Espaços periféricos atuam com formação de público e incentivo à leitura de quadrinhos

Espaços periféricos atuam com formação de público e incentivo à leitura de quadrinhos

Artistas e entusiastas apontam papel transformador de HQs nas periferias e reforçam a necessidade de apoio para ampliar o impacto

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Tempo de leitura: 10 minutos

Por Aline Rodrigues (texto e fotos). Edição: Thiago Borges. Arte: Rafael Cristiano

Há quem reconheça que pegou gosto pela leitura a partir das histórias em quadrinhos (HQs). Dos gibis da Turma da Mônica aos mangás (quadrinhos da cultura japonesa), existem publicações para todos os gostos: internacionais, nacionais, inclusive produções de periferias de São Paulo e de outros estados podem ser encontradas em lugares especializados no assunto.

Isso se refletiu, por exemplo, no que vimos na 3ª edição da Perifacon, a primeira convenção nerd, geek e pop das periferias. O evento aconteceu no dia 30 de julho no Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes, na zona Leste de São Paulo, e reuniu mais de 15 mil pessoas em uma programação diversa com palestras, entrevistas, rodas de conversa, vivências de games, RPGs e jogos de mesa, sessões de autógrafo e concurso de cosplay.

Beco dos Artistas, na Perifacon

As histórias em quadrinhos tiveram espaço importante com conversas sobre o assunto, exposição e venda de produções de estilos e artistas de vários lugares.

“Possibilitar ter um espaço na minha quebrada onde eu conheço pessoas que gostam daquilo que eu gosto eu já acho isso fantástico. A mídia de quadrinhos é uma mídia extremamente cara, e [se a gente] pensar no contexto que as pessoas vivem elas não conseguem ter acesso fácil”, aponta Jonatas Varela.

O professor de Artes se encanta em proporcionar para outras pessoas o que ele sonhou quando ainda era adolescente. Jonatas é co-fundador da Prateleira de Quadrinhos, instituição que tem as HQs como ferramentas para o diálogo com o território que mora e atua, na zona Leste.

Além de manter e disponibilizar um acervo de 5 mil HQs na biblioteca do CEU Parque do Carmo, com mil exemplares de publicações nacionais, a Prateleira de Quadrinhos realiza debates, formações, leituras em grupo, gibiteca itinerante (Kuadrombi), a revista Xablau com histórias da comunidade, e o evento Gueto Geek, que terá nova edição em 26 de agosto por meio do Fomento à Cultura da Periferia.

Abrindo horizontes

“Caraca! Eu sempre quis ler isso. Nossa, tem Naruto completo”. 

Jonatas diz que é assim que muitas crianças reagem quando descobrem a gibiteca da Prateleira de Quadrinhos: “Você ‘fisga’ eles com isso, algo que já está na personalidade deles, e vai trazendo outros livros”.

Jonatas Varela ao lado de Letícia Ferreira, durante a mesa

Ele compartilha uma conquista a mais, que é “hackear o sistema” para quem frequenta as atividades da Prateleira de Quadrinhos e que, ao acessar obras de artistas das periferias, passam a entender que também podem produzir.

“Trabalhar com formação de público é muito legal, desde crianças até pessoas adultas que nunca tinham pegado um quadrinho, jogado um jogo de tabuleiro”, conta Letícia Ferreira, co-idealizadora da Gibiteca Balão, que desde 2014 mantém um o espaço instalado na Ocupação Cultural Coragem, em Itaquera.

O espaço tem um lugar especial para os quadrinhos, com um acervo de livros e HQs que somam mais de 7 mil exemplares, mas que também oferece uma programação para seu público em diferentes linguagens como monitoria de jogos de tabuleiro, mesa de RPG, concurso de cosplay e fantasia, bate-papos e encontros com artistas da cultura nerd, pop e geek.

“Trabalhar com novos leitores, novos jogadores e novos apreciadores da cultura nerd é muito legal”, reconhece Letícia, somando a satisfação de poder despertar “o senso crítico através da cultura pop e de um lugar que você não espera falar sobre política, por exemplo”. A jornalista dividiu com Jonatas a conversa sobre projetos sociais que causam impacto por meio da cultura pop durante a Perifacon.

Manter o sonho

Tanto Jonatas quanto Letícia se moveram por uma paixão para criar espaços de contato com HQs na zona Leste. Porém, para manter suas atuações, é necessário acessar recursos – algo ainda frágil para quem está na quebrada.

É o que reforça Lelo, morador do Grajaú, artista do graffiti e da pichação, arteeducador e co-fundador de O Corre Coletivo. Ao lado de Ciano Buzz e Lucas Andrade, com mediação de Juliana Oliveira, ele integrou o papo sobre “Lajota: Quebrada Web Comics”.

“A gente tem várias ideias, mas as coisas acontecem quando você tem políticas públicas que pensam sobre isso, que apoiam e incentivam para que a gente consiga fazer minimamente”, destaca Lelo.

O Lajota, por exemplo, é um selo que reúne produções de web comics (quadrinhos digitais) de 10 artistas perifériques e foi lançado no Museu das Favelas, em maio de 2023. O projeto recebeu apoio do Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), uma política pública de origem popular executada pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.

Da esquerda para a direita: Ana Paula de Resende, Ciano Buzz, Lucas Andrade e Wesley Silva (Lelo) (foto: Ana Paula de Rezende)

“A política pública oportuniza. A gente lança esses quadrinhos digitalmente, sente como está o público, sente se tem demanda e consegue imprimir. A gente consegue testar, antigamente não tinha essa possibilidade”.

Ele cita o caso da HQ Wizu, de Lucas Andrade, artista ilustrador e educador que integra o grupo e lançou sua webcomics este ano pelo selo Lajota e aproveitou a Perifacon para lançar a HQ impressa.

No perfil do Instagram de O Corre Coletivo, é possível acessar mais sobre as características das webcomics, dicas de plataformas para acessar esse formato de HQs entre outras informações para inserir novos públicos no universo das histórias em quadrinhos, além de ter na bio o link para acessar seis web comics do selo Lajota.

Troca de experiências

Eventos como a Perifacon são importantes também para que artistas se encontrem e troquem experiências, tenham novas vivências.

A multiartista Lana Potiguara veio do Morro da Mineira, no bairro do Catumbi, no Rio de Janeiro, para participar da Perifacon. Ela começou a escrever suas histórias em 2016, no Facebook. Hoje, aos 26 anos, essa é a segunda edição em que ela marca presença e esteve no Beco dos Artistas, destinado a profissionais independentes de periferias.

“É muito gratificante. Nunca imaginei estar pela segunda vez, vir de longe e as pessoas me reconhecerem, reconhecerem minha arte”, comemora ela, uma jovem indígena travesti que traz em suas obras a pauta indígena e trans, inclusive no livro infantil “Kadu o Pinóquio”, que trouxe para vender na convenção.

“Eu pensei que o fato dele [o boneco] querer ser um menino de verdade combinava com a vivência trans”, diz ela.  O livro foi viabilizado por meio de uma campanha na plataforma de financiamento colaborativo Catarse por mais de 50 pessoas.

Raquel Teixeira veio mais de longe. Desembarcou em São Paulo vinda da Cidade Nova, periferia de Manaus, Amazonas. Como ela mesmo disse, “periferia do Brasil e de Manaus”. A jovem também multiartista de 27 anos sempre quis participar da Perifacon, mas não tinha recursos. “Aqui, eu consigo ter contato com outras artes, estéticas de outras periferias e outras questões políticas e sociais envolvidas na arte e que acaba me inspirando”, conta.

Raquel compõe os coletivos Quadrinistas Indígenas e Iukytáias – este reúne 12 artistas nortistas com o propósito de divulgar a cultura da região por meio de ilustrações e quadrinhos independentes. Recentemente, lançaram a “Coletânea Mizuras”, que reúne a obra de todes e foi finalista do Prêmio LeBlanc na categoria “História em Quadrinhos Independentes Nacional”.

Cândido levou a família no lançamento de sua primeira HQ Azul Estelar

Já Cândido veio de Osasco e, aos 42 anos, lançou sua primeira publicação de HQ. “Azul Estelar” foi publicada por meio de uma parceria da Perifacon com a editora Mino, Chiaroscuro Studios e o projeto social Narrativas Periféricas, que viabilizou a publicação de 10 quadrinistas de diferentes lugares periféricos da região metropolitana de São Paulo.

O artista trabalha profissionalmente com arte há apenas 3 anos após deixar o trabalho como bancário e social media para se dedicar, com o apoio da família, ao ramo artístico. Hoje, sua atuação já é 80% dedicada a livros para crianças, principalmente ilustrando capas e agora com a HQ autoral. Quadrinhos é o que ele mais ama fazer e para onde quer direcionar sua atuação. Sua irmã, esposa e filhos foram conferir e apoiá-lo em seu lançamento.

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