Com crise e inflação, famílias se sacrificam para enviar “jumbo” a parentes presos

Com crise e inflação, famílias se sacrificam para enviar “jumbo” a parentes presos

"Kits" com alimentos e itens de higiene e limpeza são enviados por parentes a unidades prisionais para suprir omissão do Estado. Apenas no primeiro semestre de 2022, os 28 presídios da região metropolitana de SP receberam mais de 143,7 mil encomendas do tipo

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Tempo de leitura: 12 minutos

Por Thiago Borges, da Periferia em Movimento. Foto em destaque: Divulgação/Babiy Querino. Texto originalmente publicado no UOL Notícias por meio do Selo Plural

Cobertor, toalha, chinelo e materiais de higiene. Esses são os principais itens que Sheila Aparecida Gomes de Resende, de 38 anos, pretende enviar ao filho Diego, 23, preso na Penitenciária de Reginópolis, no interior de São Paulo. Desempregada, a auxiliar de limpeza faz bicos em eventos para juntar dinheiro e mandar o “jumbo”, como são chamados os kits com itens enviados por familiares a pessoas em privação de liberdade. Na última remessa, Sheila mandou duas camisetas, produtos de higiene e limpeza, um pacote de cigarros, bolos, rosquinha de coco, bolacha recheada e um pote de paçoca.

A despesa de Sheila com o filho preso gira em torno de R$ 900 a R$ 1.400 mensais. No presídio em que o filho está, o jumbo pode ser enviado duas vezes por mês. Em agosto, Sheila enviou um e tentou juntar dinheiro para enviar uma segunda remessa, mas não conseguiu. Além do jumbo, a moradora do Jardim Ângela, periferia da zona Sul de São Paulo, gasta ao menos uma vez por mês com passagens de ônibus, pousada e alimentação para visitar Diego, detido a 400 km de casa. Com a inflação dos alimentos entre janeiro e julho de 2022 acumulada em 9,3% e um desemprego que atinge 10,1 milhões de pessoas, Sheila se sacrifica para garantir itens básicos e manter a proximidade com o filho.

A mãe de Diego defende a inocência do filho e recorre da sentença de 9 anos à qual ele foi condenado. Preso em junho de 2021, o jovem foi acusado de roubar um celular. Segundo Sheila, no momento em que o celular foi roubado, Diego estava com ela em uma loja de materiais de construção, no Jardim Jacira, em Itapecerica da Serra (SP).

Segundo Sheila, o filho foi condenado porque a defesa não apresentou as provas da inocência recolhidas pela família. “Eu vivo e trabalho pra ele. É muito difícil, mas tenho que ser forte, porque ele precisa de mim”, diz. Sheila vive com as duas filhas de 20 e 18 anos e ajuda a criar o neto de 1 ano e 7 meses.

“O jumbo ajuda no processo, mostra que ele não está sozinho, que ele tem família. Nunca deixei faltar nada pra ele, sempre lutei e corri atrás. Mesmo cansada e virando a noite, jamais ia deixar de mandar” – Sheila Aparecida Gomes de Resende, 38 anos

O Brasil mantém 911.183 pessoas privadas de liberdade (entre prisões provisórias ou definitivas), segundo dados do BNMP (Banco Nacional de Monitoramento de Prisões) do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) de agosto de 2022. Os números colocam o país no terceiro lugar no ranking de maiores populações carcerárias do mundo, atrás apenas de Estados Unidos e China. Cerca de 94% são homens, 67,5% são pessoas negras e 45% ainda aguardam julgamento.

Caixa de entrada

As visitas, o envio de cartas e o jumbo são direitos que permitem o contato de quem está no cárcere com o mundo exterior. Mas, para a desembargadora Kenarik Boujikian, para além do papel afetivo, o jumbo ocupa um espaço de subsistência porque o Estado é omisso no cumprimento da lei e na garantia de condições básicas no cárcere. “Para a pessoa que está presa, esses direitos têm uma conotação muito mais forte porque não existe outra opção”, explica. “Mas é praticamente a família que sustenta o preso dentro da prisão”, completa.

Apenas no primeiro semestre de 2022, os 28 presídios das 39 cidades que compõem a região metropolitana de São Paulo receberam mais de 143,7 mil encomendas enviadas por correspondência, segundo levantamento da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) feito a pedido da reportagem da Periferia em Movimento.

Ao todo, o Estado de São Paulo tem 179 unidades prisionais e uma população carcerária de 197,6 mil pessoas, sendo 188,7 mil homens e 8,8 mil mulheres.

Em seu site, a pasta do Governo do Estado diz que o jumbo é importante para a ressocialização dos presos, mas salienta que o poder público é responsável por toda a assistência aos detentos. Segundo a assessoria de imprensa do órgão, os presos recebem uniforme completo, peças íntimas e itens de higiene e limpeza, incluindo absorventes para as mulheres, que são repostos “de acordo com a necessidade”. Também diz que segue as indicações da OMS (Organização Mundial da Saúde), com fornecimento de pelo menos 100 litros de água por pessoa para consumo diário e três refeições por dia, além de remédios conforme prescrição médica.

Nos últimos quatro anos, porém, o Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo recebeu 462 denúncias sobre a má qualidade da alimentação nos presídios paulistas – em média, uma denúncia a cada três dias. Por meio de reclamações enviadas anonimamente, familiares ou os próprios presos dizem que os alimentos chegam estragados ou com impurezas e que há um “jejum forçado” entre o jantar e o café da manhã, com intervalo que pode chegar a 15 horas.

Segundo a Defensoria, ao oferecer três refeições por dia, 80% das unidades prisionais contrariam resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que estabelece o fornecimento de cinco refeições diárias.

Além disso, com a pandemia, a permissão de entrega de jumbos ficou restrita aos envios pelos Correios – em muitas unidades essa medida continua válida -, o que gera ônus financeiro às famílias que preferem enviar o jumbo pessoalmente, por ser mais barato, seja por morarem perto ou aproveitarem as visitas para o envio.

A Defensoria aponta ainda que a inexistência de uma lista comum de itens autorizados no jumbo para todas as unidades prisionais do Estado dificulta o envio. Hoje, cada presídio tem sua própria lista e os pacotes podem ser devolvidos ao remetente quando algum item está fora da especificação determinada pela unidade, que costumam definir que um produto precisa ter embalagem transparente ou não, as cores dos vestuários e até o dia em que a remessa deve ser feita.

A SAP informa que há uma normativa em análise para atualizar a lista de itens permitidos para envio aos presos em todo o estado de São Paulo.

Amor em caixa

A mãe de Demetrius Aparecido de Freitas, 46, sentiu na pele as dificuldades para enviar o jumbo ao filho nos dez meses em que ele esteve preso no Centro de Progressão Penitenciária (CPP) de Hortolândia. Do lado de dentro do cárcere, Freitas trabalhou na distribuição dos itens que chegavam nas caixas. Disposto a facilitar esse processo, ele elaborou um plano de negócios que colocou em prática a partir de fevereiro de 2020, quando retomou a liberdade.

Com um investimento de R$ 3 mil que juntou com o trabalho na prisão, Freitas lançou a Disk Jumbo em abril de 2020. Pela internet, clientes podem escolher entre 400 produtos e montar jumbos de 6 a 12 quilos. A empresa só vende para quem está cadastrado no rol de visitantes do familiar preso. Esse cadastro é feito pelo parente na unidade prisional, que emite uma carteirinha de acesso. Ao fazer o pedido, o cliente deve informar todos os dados do detento, incluindo matrícula, raio e cela em que está preso, e o pedido deve ser feito em nome da pessoa autorizada pela unidade prisional.

Sediada em Aricanduva, zona Leste de São Paulo, a Disk Jumbo não é a única empresa do ramo. A Jumbo CDP, localizada em São Miguel Paulista (também na zona Leste), e a Picua, em Sumaré (interior paulista) estão entre as concorrentes formais, mas há uma série de comerciantes informais que operam via WhatsApp e redes sociais.

“O nosso diferencial é saber falar a língua do cliente. Se a gente pega o cliente que é réu primário, normalmente a família está desesperada em todos os sentidos. Então, além do jumbo, a gente dá uma orientação para família sobre como proceder” – Demetrius Aparecido de Freitas, empresário

Aberta no início da pandemia, a Disk Jumbo já enviou mais de 3,3 mil kits e emprega seis funcionários atualmente. “Tem cliente que gosta de mandar exatamente aquilo que seu parente comia, usava aqui na rua. Então é uma prova de amor, mesmo”, diz Freitas.

Em geral, a clientela é formada por pessoas de baixa renda, principalmente por mães e mulheres de pessoas em sua primeira detenção. O gasto médio é de R$ 150 por jumbo, o que equivale a uma caixa de seis quilos. Freitas diz ainda que, no último ano, essa caixa ganhou a preferência da clientela em relação a de 12 quilos, mais cara, como um reflexo da situação econômica do país.

Vínculo fragilizado

Fabio Pereira ficou preso entre 2004 e 2007 e se recorda do ritual que era receber uma visita, uma carta ou um jumbo. “Quando chega ali, não é uma caixa com algumas necessidades básicas. É amor que tá chegando ali, na forma de produtos, de mercadoria. Por isso, dói quando você não consegue fazer chegar essa caixa de amor, porque tá numa condição que não te permite”, diz ele, que desde 2016 é membro da Associação Amparar.

A organização reúne familiares de presos, presta assistência jurídica e denuncia condições precárias detectadas no cárcere. Com a pandemia, também arrecadou recursos e alimentos para enviar a pessoas presas. Com a crise econômica, Pereira afirma que muitas famílias têm optado por mandar o jumbo a fazer visitas presenciais para economizar dinheiro e ainda assim manter o vínculo.

Para a bailarina Barbara Querino, 24, o jumbo garante um pouco de dignidade a quem está preso. Depois de passar um ano e nove meses no cárcere, ela foi inocentada nos dois processos nos quais era acusada de roubo. Passou a militar em torno da questão. Entre 2020 e 2021, ela articulou com o Coletivo Ujima a campanha Vidas Carcerárias Importam, que arrecadou recursos para montar e enviar jumbos a pessoas presas no Estado de São Paulo. Mais de 400 famílias foram beneficiadas pela campanha.

“A restrição a esses itens está dentro de um plano para desumanizar essas pessoas. Estar no sistema carcerário e não ter apoio, como a distribuição do básico para sobreviver, é um esquema para você entender que ali é só mais um número e não merece viver em sociedade”, completa ela.

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