Ferruge: Grajaú lamenta morte de educador e ativista na represa Billings

Ferruge: Grajaú lamenta morte de educador e ativista na represa Billings

Adolfo Duarte, o Ferruge, defendia potencial de território às margens do reservatório e deixa legado de lutas e conquistas no Extremo Sul de São Paulo

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Tempo de leitura: 9 minutos

Por Thiago Borges. Colaboração Aline Rodrigues

Este texto será atualizado à medida em que recebermos novos depoimentos

“Queremos valorizar o que temos na porta de casa”.

Essa fala foi feita em 2015 por Adolfo Duarte, homem de várias facetas e importante liderança comunitária orgânica do Grajaú, distrito localizado na periferia do Extremo Sul da cidade de São Paulo. A barba e os já raros cabelos ruivos renderam a ele o apelido de Ferruge, pelo qual era conhecido em todo o território.

Cria da região, ele recém-completara 41 anos no último domingo (31/7). No dia seguinte (1º/8), desapareceu no ambiente em que mais se sentia à vontade: a represa Billings, o maior reservatório de água em área urbana do mundo. O sumiço repentino de alguém conhecia essas águas com a palma da mão gerou angústia a família, amizades e quem trabalhava com ele, levando também a uma mobilização gigante fundamental para repercussão e investigação do caso.

Nessa periferia, a represa era o centro do mundo pra ele, que percorria seu interior e voltava para as margens com ideias e soluções. E era isso que ele tanto queria valorizar: a represa Billings, quem morava a sua volta e todo o potencial que representava.

“Ele tinha o mesmo objetivo [que o nosso], de povoar essa represa (…) através da cultura da navegação, era muito legítimo, sabe?”, observa Laís Guimarães, integrante do coletivo Navegando nas Artes, que atua com navegação a vel na represa. “Ele é uma das maiores referências pra quem luta por esse manancial, que é vivo, é das pessoas. Eu espero que ele tenha bons ventos na sua passagem, porque o legado dele vai ficar mais rico nos nossos corações”, completa.

Luciana Aparecida, idealizadora do projeto Recicla Alimentos, lembra que a geladeira de sua própria casa foi uma doação feita por Ferruge e a organização Meninos da Billings, que ele presidia. O eletrodoméstico é fundamental para ela armazenar os produtos que utiliza para preparar os cafés e almoços que serve em eventos.

“Essa oportunidade que eu trago pra vida, de alguém olhar pra você e falar ‘eu confio em você'”, recorda-se.

Às margens

A trajetória de Ferruge era extensa.

DJ em casas noturnas famosas, criou no território o Café com Bolachas, projeto que realiza encontros de amantes do vinil com um cafezinho a tiracolo.

O arte educador Wellington Neri, o Tim do coletivo Imagem, reforça a importância de Ferruge para a cultura hip hop no Grajaú – desde abrir as portas da antiga casa Fábrica 5 para o grafiteiro Niggaz pintar até auxiliar nos eventos do movimento local. “É tanta coisa que esse cara fez pra história da cultura do Grajaú, sabe?”.

Marceneiro, Ferruge criava móveis, brinquedos e itens de decoração.

Historiador de formação, pesquisou a ocupação populacional do território localizado em área de mananciais, desde as pequenas chácaras até as grandes aglomerações.

Professor, não restringia sua atuação à sala de aula formal. Todo espaço era espaço de educação .

Ferruge tem papel fundamental na trajetória da Periferia em Movimento, que começou no Grajaú. Em 2009, quando realizávamos a pesquisa sobre mídias e movimentos sociais no território, ele abriu as portas do CEU Navegantes (onde foi coordenador cultural) e indicou caminhos. No ano seguinte, também auxiliou na realização de debates e no local. E sempre que precisávamos daquela informação importante, era ele uma fonte confiável ou aquela ponte para chegar em quem precisávamos ouvir.

Articulador mil grau das ruas e vielas dessas quebradas, o que fazia o coração dele bater forte mesmo é o que aparece no horizonte do Grajaú: as águas da Billings.

Nas águas

Construída em 1925 para gerar energia, a represa Billings já não cumpre sua função principal mas continua um cenário presente na vida de 1 milhão de pessoas da Grande São Paulo que vivem em seu entorno. Suas margens, tanto no lado da capital paulista quanto no ABC, foram ocupadas por milhares de famílias fugindo do preço alto dos aluguéis nas regiões mais centrais. Nos últimos 30 anos, as penínsulas do Grajaú se tornaram novos bairros, como Cantinho do Céu, Gaivotas, Prainha e Shangri-lá.

Em 2014, a Periferia em Movimento estava em uma oficina nas margens da Billings e encontrou o Ferruge, que preparava um bote para levar uma moradora idosa para passear na represa Billings.

“Muita gente tá cogitando comprar um barco ao invés de um carro ou uma moto”, disse ele, que via potencial no modal aquático.

Ele contou pra gente que a questão da moradia precária e o fato de boa parte de habitantes passarem a maior parte do dia fora do bairro – seja trabalhando, estudando ou em outros afazeres – acabam afastando a população do manancial. Além disso, pelo histórico de ocupação local motivado pela necessidade de um teto, muita gente sente até vergonha de morar nas margens.

Para resgatar a identidade cultural local, ele se engajou em projetos náuticos que focam na apropriação da represa e no reconhecimento da cidade a partir das águas da Billings. “Trabalhamos o resgate cultural do cara que mora à margem da represa mas não usa por conta de um conceito cultural que se tem de morar aqui e pela poluição dessas águas”, disse.

Em 2014, Ferruge fundou a organização Meninos da Billings no Parque Residencial dos Lagos, bem ao lado do Parque Linear Cantinho do Céu. O local tem atividades do projeto Remada na Quebrada, com aulas de canoagem e reforço escolar em matemática, física, história e sociologia, além de trabalhar a conscientização ambiental. “Queremos desenvolver a educação por meio da náutica”, diz ele.

Billings: o que acontece quando a gente se apropria da represa?

Em 2018, com a Periferia em Movimento e várias outras iniciativas locais, fundamos a UniGraja – Universidade Livre Grajaú, que entre outros espaços realizava “aulas” na… represa Billings.

Gestor de parques municipais locais, como o Prainha e o Linear Cantinho do Céu, ele celebrou feitos recentes, como a inauguração de um deck e a promessa do prefeito Ricardo Nunes (MDB) de criar uma linha de transporte público náutico, facilitando o deslocamento da população local entre centro e periferia.

Instrutor de pilotagem náutica habilitado pela Marinha, mais recentemente Ferruge empreendeu um negócio turístico, que contempla passeios de barco e estadias em uma das margens da represa: o Recanto dos Navegantes.

Seu desaparecimento aconteceu em um desses passeios, contratado por 2 casais na noite de segunda-feira (⅛). Segundo o boletim de ocorrência, 4 jovens estavam em um bar próximo da represa quando decidiram realizar um passeio de barco com ele. O passeio foi iniciado por volta das 19h15 e, segundo os depoimentos, o barco deu um solavanco. Tanto Ferruge quanto uma das mulheres teriam caído na água. Os amigos jogaram uma boia salva-vidas, mas apenas a jovem teria conseguido se agarrar enquanto Ferruge teria sumido.

O grupo teria conseguido seguir de volta para a margem da represa, pediu ajuda em um bar e algumas pessoas do local teriam agredido os jovens por acreditar que tinham batido e jogado Ferruge na água.

Na quinta-feira (4/8), a Polícia Civil abriu uma segunda linha de apuração: além do desaparecimento, a Polícia Civil investiga a possibilidade de homicídio culposo, quando não há intenção de matar.

O corpo de Ferruge foi resgatado na manhã deste sábado (6/8), nas águas da Billings que ele tanto navegou.

Ambientalista, DJ, educador, historiador, professor, marinheiro, empreendedor, articulador, parceiro, amigo, marido, pai. São muitas palavras possíveis para definir Ferruge, um ser humano que dedicou sua vida em prol da transformação e melhor qualidade de vida às margens da Billings, nessas periferias, em São Paulo. Ficamos sem sua presença física, mas seu legado é patrimônio de toda a cidade. Obrigado, Ferruge!

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1 Comentário

  1. Silvia disse:

    Fará uma falta enorme, seu legado está em cada cantinho, nos momentos como DJ nos eventos da paz, no meninos da Billings, na remada na quebrada, em cada lugar que representava a nossa região onde dava foco a um lugar onde ele viu potencial, onde ele encontrou e mostrou para o mundo um lugar que muitas vezes esteve a margem social, não tinha tempo ruim, sempre com um vamos lá, fará falta em eventos como a inauguração dos parques lineares, fará falta ao mostrar as crianças o orgulho que devemos ter de das nossas origens, muitos cresceram juntos, muitos foram tocados por esse jeito, por sua energia. Estou certa que com seus erros e acertos está em um bom lugar.
    E seu maior feito foi inspirar a muitos meninos e meninas, da nossa região.

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