“O amanhã será preto, periférico e das mulheres”, diz covereadora do mandato Quilombo Periférico

“O amanhã será preto, periférico e das mulheres”, diz covereadora do mandato Quilombo Periférico

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Tempo de leitura: 9 minutos

Por Débora Dias*

Entre os dias 6 e 12 de março tive a oportunidade de estar no Chile representando a juventude da UNEafro Brasil, a coletiva Emana de Sapopemba e a mandata coletiva Quilombo Periférico para uma série de diálogos com parlamentares, lideranças e militantes de diversas organizações e movimentos sociais  da América Latina que se reuniram no país para trocar experiências sobre a reorganização das forças progressistas na região.

Essa experiência se deu entre uma confluência de eventos que iniciou com os preparativos para a celebração do dia 8 de março, o Dia Internacional da Mulher, e terminou com a cerimônia de posse do novo presidente da república chileno, Gabriel Boric, ex-líder estudantil que aos 36 anos de idade chega à cadeira da presidência como um dos chefes de governo mais jovens da história.

Os últimos acontecimentos no Chile apontam para uma retomada das forças progressistas na América Latina depois de uma onda conservadora que se espalhou por todos os continentes e desgastou sistemas democráticos por todo o planeta.

A própria eleição de Boric foi pavimentada desde 2019 por uma série de protestos e ações de movimentos sociais ligados às pautas feministas e da juventude que já em 2011 lutava por uma educação pública no país e, desde 2019, se mantém nas ruas com uma agenda de reformas no sistema previdenciário, no transporte público e principalmente na distribuição mais justa das riquezas do país.

Em uma das atividades que participei, ouvi de uma das lideranças dos movimentos feministas destacar que uma das principais ações dos grupos delas no país foi apontar e dialogar com a diversidade das mulheres como enfrentamento ao discurso conservador que personificava a imagem da mulher chilena na figura da Dona Juanita, uma dona de casa conservadora e submissa aos valores morais impostos pelo patriarcado.

Em contraponto, os movimentos trabalharam para provar para a sociedade que essa não é mais a mulher chilena, traçando os diversos perfis delas e encontrando formas de dialogar com toda essa diversidade. Resultado disso foi que tive a oportunidade de participar da maior celebração de um 8 de março que já estive na vida. Eram mais de 300 mil mulheres ocupando as ruas de Santiago.

Como militante de organizações do movimento negro, não pude deixar de notar a baixa adesão de mulheres afro chilenas, no entanto tinha uma diversidade muito grande de mulheres de diferentes origens. Preciso destacar que me chamou a atenção uma delegação de mulheres mapuches, povo indígena que luta historicamente pelo seu direito à terra e recentemente enfrentou as forças policiais chilenas quando um jovem da etnia foi brutalmente assassinado – isso aconteceu em 2018.

Toda essa articulação dos movimentos sociais chilenos culminou com uma intensa agenda de transformações no país que deve e precisa ser disseminada pela América Latina.

No ano passado, o país realizou uma eleição para escolher os representantes do povo na elaboração de uma nova constituinte que será colocada no lugar da atual que foi herdada do período ditatorial que foi encerrado em 1990. Foi eleita uma maioria, cerca de 70%, de candidatos independentes que defendem agendas progressistas como preservação do meio ambiente, universalização da saúde e educação de qualidade e a valorização da diversidade.

Apesar da guinada e de uma importante redistribuição dos poderes, segundo os movimentos feministas o acordo de paridade de gênero que regeu a formação do colegiado prejudicou as mulheres que receberam a maioria dos votos, mas tiveram que ceder cadeiras para constituintes homens que foram menos votados.

Voltando a falar da posse que Boric, precisamos destacar que apesar de o presidente ser homem, pela primeira vez na história do país haverá um governo majoritariamente formado por mulheres, sendo 14 mulheres em um ministério formado por 24 pastas. Com destaque para Maya Fernández Allende, que foi simbolicamente nomeada para o Ministério da Defesa. A neta de Salvador Allende, presidente que foi derrubado e assassinado pelo golpe militar que levou o ditador Augusto Pinochet ao comando do país por 17 anos, de 1973 a 1990, deverá comandar as forças de segurança do país.

A co-vereadora Débora Dias, à frente, com demais integrantes da mandata coletiva Quilombo Periférico, eleita na cidade de São Paulo em 2020 (Foto Divulgação)

Paralelos entre Chile e Brasil

Hoje 51,1% da população do Chile é formada por mulheres e os jovens com idade entre 15 e 29 anos representam cerca de 18%. No Brasil as populações negra e feminina representam respectivamente 54% e 51,1%. Dentro desses recortes as mulheres negras representam 28% e os jovens com idade entre 15 e 29 anos somam quase um quarto da população do país, mais de 52 milhões (Dados do Instituto Nacional de Estatísticas – INE do Chile e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – IBGE).

Economicamente, o Estado chileno responde pelo maior Produto Interno Bruto – PIB per capita da América Latina, gerando em 2020 cerca de 13,2 mil dólares por pessoa. Enquanto o Brasil vem de um longo período de estagnação, com um PIB per capita de 14,5 mil dólares.

No entanto, o Brasil ocupa a 84ª posição no ranking do índice de Desenvolvimento Humano – IDH com 0,765 pontos enquanto o Chile está na 43ª posição, com 851 pontos. Apesar da distância no ranking, os dois países sofrem com uma percepção latente da desigualdade.

Os dados acima apontam para o quanto a experiência do trabalho de formiga dos movimentos sociais, uma apropriação da política pelas mulheres, sobretudo as mais jovens, e uma ocupação das ruas foram fundamentais para que houvesse uma reprogramação de rota em terras chilenas.

No Brasil a chave para derrotar a ascensão de uma direita retrógrada, oligárquica e dominada por coronéis também está nas mãos de uma população preta, periférica e que tem em sua maioria mulheres e jovens negras e negros que desde já clamam por sua emancipação política.

E foram os movimentos sociais que historicamente ocuparam as bases onde está essa população. Esses movimentos foram fundamentais para garantir a sobrevivência dessa população nos momentos mais difíceis, como podemos constatar nesses anos pandêmicos. E hoje esses movimentos são essenciais para que uma renovação política emerja dessas bases e possa ocupar os espaços de decisão.

O exemplo chileno aponta a direção que os movimentos sociais no Brasil, sobretudo o movimento negro, já vêm trabalhando desde a sua gênese que é formação não só de cidadãos conscientes, mas de lideranças que sabem que a transformação do país só se dará pelas mãos daquelas que sempre estiveram de fora dos espaços de decisão: as mulheres negras, jovens e periféricas.

E cabe aos partidos ditos progressistas entenderem que enquanto suas estruturas não se adequarem para essa realidade, enquanto seus quadros não forem compostos por essas mulheres e jovens e enquanto suas candidaturas não representarem de verdade aqueles que dependem diariamente das políticas públicas que são formuladas pelos parlamentares e órgãos dos executivo, não haverá justiça em nossa sociedade.

*Débora Dias é covereadora da Mandata Coletiva Quilombo Periférico, é preta, moradora de Sapopemba e sapatão. Estudante de Ciências Sociais da UNIFESP, foi orientadora sócio educativa em Centro de Criança e Adolescente – CCA, é educadora popular e articuladora da UNEafro Brasil do núcleo Ilda Martins (Fazenda da Juta-ZL) e no Projeto Agente Popular de Saúde. É artista e pesquisadora da Coletiva Emana Zona Leste.

Sobre a Mandata Coletiva Quilombo Periférico: Formada por seis lideranças forjadas no movimento negro e periférico, todas comprometidas com as causas sociais, o coletivo Quilombo Periférico conquistou, por meio da trajetória de cada um em trabalhos de base nas periferias, uma cadeira na 18a legislatura da cidade de São Paulo. A vereança é exercida pela covereadora Elaine Mineiro, que divide a direção do mandato com Débora Dias, Samara Sosthenes, Júlio Cézar de Andrade, Erick Ovelha e Alex Barcellos.

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