Por Thiago Borges. Arte: Rafael Cristiano
Sabe quando você deixa a panela de feijão no fogo e acaba engrossando o caldo, correndo inclusive o risco de queimar? É assim que Ingryd de Oliveira Cardoso resume a procura por cuidados pessoais nesse período. A terapeuta corporal atende pessoas das periferias de São Paulo e nota que as queixas em si não mudaram, mas ficaram mais densas – tal como o feijão.
“As pessoas estão me procurando para tratar dores muito antigas, que estavam postergando o cuidado há muito tempo e que foram acumulando processos traumáticos; estão se sentindo ansiosas e estressadas, a ponto de sustentarem sentimentos como a tristeza e a angústia por mais tempo que o natural; e se sentem sedentárias, paradas, com vontade de mudar as coisas e a si mesmas”, aponta a profissional, que tem 28 anos e mora no Parque Residencial Cocaia (Grajaú, Extremo Sul de São Paulo).
A pandemia e todas as situações intensificadas por ela estão sempre ali. “Desde desemprego a excesso de trabalho, de solidão a esgotamento das relações mais próximas”, percebe Caíque Almeida Benedetti, 28. O morador de Pirituba é músico, integra o Programa de Redução de Danos da Coordenação de IST/AIDS da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo e é idealizador do projeto Ideia Fixa Psi.
Com o início da pandemia, Caíque voltou a fazer atendimentos clínicos e tem observado o que contribui para o sofrimento mental coletivo: a promoção de desinformação, o descaso e a irresponsabilidade do poder público, que fomentam a condição atual vinculada a um projeto de desigualdades, servidão e genocídio.
“As pessoas de alguma maneira respaldam suas opiniões e atitudes no modo como representantes lidam com essas questões, mas não têm o acesso e os privilégios dessa classe, e sem dúvida isso colaborou não só para o aumento de mortes e contágio de covid nas periferias, mas também para a desinformação e avanço de uma agenda política reforçadora dessas desigualdades”, corrobora Caíque.
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O resultado disso, segundo Ingryd, é a falta de perspectivas. “As pessoas estão se sentindo impotentes e, ao se depararem com um cenário que está se tornando cada vez mais caótico e desigual, vão criando mecanismos sabotadores que a longo prazo revelam um distanciamento grave da capacidade de criar expectativas, planejar, ver um pouco mais adiante”, nota.
Por outro lado, ela vê uma busca de alternativas em contraponto a essas “repetições”. “Esse é o ponto de mutação que um autocuidado precisa”, pontua ela, que Trabalha com acupuntura, auriculoterapia, massagens orientais, iogaterapia, práticas medidativas, orientação e indicação de plantas medicinais e terapia floral.
Se mulheres eram as que mais procuravam os serviços de Ingryd, hoje em dia homens também têm buscado esses cuidados – um movimento de equilíbrio dessa balança, que sempre foi desigual já que nós sempre fomos menos responsáveis com o autocuidado.
Já Caíque tem atendido muitas pessoas negras e LGBTQIA+ em busca principalmente de terapeutas negres, o que considera um sinal de valorização do cuidado mental e de um “aquilombamento extremamente necessário”.
O que fazer?
Modificar estruturas históricas que geram muito do nosso sofrimento não depende de apenas uma pessoa, mas há alternativas individuais. Buscar ajuda profissional em um momento crítico é importante. Além de Caíque (contato aqui) e Ingryd (aqui), iniciativas autônomas como a Roda Terapêutica das Pretas e serviços públicos como os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) são possibilidades para lidar com isso.
E há medidas de autocuidado que podem ser adotadas na rotina diária.
Caíque observa que é importante alternar atividades corporal e mental com momentos de descanso – uma das maiores dificuldades nessa pandemia, segundo ele. “Atividades físicas são grandes aliadas na nossa situação, assim como a leitura e novos aprendizados. Manter o corpo e a mente ativos são tão importantes quanto reconhecer a importância do ócio”, aponta. Se a pessoa faz home office, diferenciar o “espaço de trabalho” e o “espaço da casa” é fundamental para um cotidiano mais fluído.
“Metas cotidianas tendem a trazer uma satisfação mais imediata”, ressalta Ingryd. Deixar a louça lavada, caminhar 15 minutos ou conversar com uma pessoa que gosta: 3 tarefas simples do cotidiano que podem garantir uma sensação de movimento a cada resolução. O uso de plantas para fazer chás ou inalação é outra indicação.
“Acredito que ainda seguiremos em passos lentos, mas a quebrada tem um poder criativo que transcende a história. E ritualizar o autocuidado sempre foi reflexo dessa resistência – seja com uma prosa boa na calçada, com um pagode no quintal da vizinha ou uma faxina em casa com o som ligado”, completa Ingrid. “Só precisamos utilizar as máscaras e não aglomerar por mais um tempinho (risos)”.
Thiago Borges