Das dificuldades para obter o benefício em 2020 à perda da renda emergencial em 2021, a repórter Karine Gomes parte da própria experiência para narrar o drama de milhões de famílias brasileiras
Por Karine Gomes*. Arte: Rafael Cristiano
Quando as primeiras notícias sobre a circulação de um misterioso vírus começaram a circular, jamais imaginei que chegaria a tal proporção catastrófica. A ficha demorou a cair.
De repente, minha empresa começou a realocar todos os seus funcionários para trabalharem de suas casas. Observava o medo no olhar das pessoas e aquilo me assustava. Quando mortes diárias começaram a acontecer e, também, quando mais de 300 colegas da minha empresa foram desligados eu percebi: a pandemia chegou até mim.
Eu continuei empregada, graças a Deus, mas lamentei e muito pelas pessoas que perderam seus empregos. Enquanto a pandemia desdobrou de forma extrema a vida das pessoas, na minha a princípio não fez tanto efeito. Isso porque, em casa, sempre fui a titular. Aquela que paga as contas, sabe? Então eu já estava acostumada a viver no sufoco, racionando os gastos.
Meus pais são idosos, não têm mais condições de trabalhar e não são aposentados ainda. Minha mãe, dona Geralda Gomes, tem 65 anos, é diabética e está na fila de espera para uma cirurgia de catarata. Meu pai, seu Adílson José, com seus 56, é adoentado, tem problemas psicológicos, o que também o impossibilitou de trabalhar há muitos anos.
Para muitas famílias, a pandemia consequentemente trouxe o medo, o desemprego e a fome. Desse modo, era esperado que o governo tomasse alguma medida para que as pessoas não ficassem à mercê do caos. E é esse assunto que quero compartilhar com vocês.
O auxílio emergencial chegou para ajudar muitas famílias, inclusive a minha. O valor concedido de R$ 600 era importante. Na verdade, em partes, se compararmos os preços dos itens básicos para se viver. Mas, sobretudo, era o necessário para se manter e acredito que essa era a intenção: “nos manter”.
Logo que o programa começou, tratei de inscrever os meus pais. Ambos, segundo o critério de aprovação, tinham o direito ao recebimento. E assim se fez. A minha renda familiar subiu para R$ 2.600, somando os 2 benefícios mais o meu salário. Era uma ajuda considerável. Às vezes, me pegava refletindo sobre aquelas pessoas que estavam desempregadas, antes mesmo de tudo acontecer, ou aquelas que perderam seus empregos no decorrer da pandemia. Pensava em como esse valor poderia ajudá-las. Seria um auxílio e tanto, assim como estava sendo para mim e meus pais.
Apesar das aparentes boas intenções governamentais, sou do tipo de pessoa que gosta de contestar as coisas. O fato é que nunca me desceu algumas situações e procedimentos no processo cadastral do auxílio emergencial. Um exemplo eram os bugs que o Caixa Tem costumava apresentar. Defeitos quase que voluntários transpareciam a qualidade do aplicativo. Era como se a pessoa, ao manusear a ferramenta, fosse induzida ao erro.
Resultado?! Mais de 8 horas na fila de uma agência, debaixo de, quase sempre, um sol quente, para corrigir uma falha do próprio app. Ao reparar a fila extensa, deduzi que era impossível que mais de 100 pessoas errassem o manuseio em um único dia, somente naquela agência.
A central de atendimento, famosa 0800, que deveria prestar o atendimento ao cliente e solucionar os casos, não funcionava. Consequentemente: aglomeração e uma pessoa idosa, na época listada entre a faixa etária mais mortal do vírus, em uma fila que não saia do lugar. As pessoas repetiam a mesma frase: “Isso é uma humilhação”. Realmente era.
Era nítido o descaso com as pessoas. Quando não era no aplicativo ou na fila, era no recebimento. Para mim, soava cômico, pois o nome do benefício era emergencial, mas na hora do saque ou movimentação, tinha datas estipuladas, distantes. “Quem tem fome, tem pressa”. Segundo as justificativas, as datas eram para evitar aglomerações.
Não bastasse, ainda éramos submetidos ao preconceito de pessoas que, possivelmente, compartilhavam da mesma situação financeira. É o caso da estudante de Direito pela FMU, Joana Darc Gonçalves, de 25 anos, moradora do Jardim Ellus, região do Grajaú (Extremo Sul de São Paulo), que passou por humilhações ao comprar seus mantimentos no mercado.
Eu costumava brincar que o auxílio emergencial estava mais para ‘auxílio humilhação’, por conta de algumas situações de constrangimento que a gente passava com o aplicativo. Claro que a brincadeira satiriza a verdade: o preconceito camuflado das pessoas. Não bastasse a humilhação indireta que o sistema do aplicativo induz, ainda tínhamos que lidar com o julgamento das pessoas, muitas dessas na mesma situação que você. Lembro-me quando fui ao mercado fazer compras, tinha acabado de receber o auxílio. As notícias falavam que o saque não era permitido de imediato, mas que os beneficiários poderiam fazer compras com o valor, mediante o cartão virtual. Assim que compensou, fui ao mercado para comprar os produtos básicos de casa. Ao chegar no local, o cartão não foi autorizado. Resultado: gerente acionada, olhares tortos dos funcionários e clientes da fila e um show de constrangimento”
Joana Darc Gonçalves, 25 anos, estudante e moradora do Extremo Sul de São Paulo
Sentimento de culpa
Éramos obrigados a ouvir os discursos do senhor presidente, Jair Bolsonaro, que falava sobre a diminuição do benefício, sobre os “prejuízos” que a distribuição causava na economia e outras indagações mais. Com essas supostas ameaças de corte, quem recebia o auxílio se sentia quase como um culpado pela baixa econômica. Um sentimento de incapacidade. Ao mesmo tempo que se estendia a mão, apontava-se o dedo.
Aos trancos e barrancos, deu tudo certo. Meus pais conseguiram pegar as 5 parcelas de R$ 600 e foi um benefício e tanto. Ciente dos avisos de corte, já esperava pelo cancelamento. Bastou uma flexibilização da quarentena. Claro que houve contestação e, foi tanta, que por pressão, liberaram mais quatro parcelas de R$300. E assim, o povo, que já cresce acostumado com o pouco, agora, se acostumava com o mínimo. E olha eu contestando novamente.
Começou com as parcelas, depois os lotes, acrescentou-se os ciclos e, por fim, passaram o pente e reduziram pela metade. Mas tudo bem, R$ 300 estava em conta. Era melhor do que nada. Cresci aprendendo a agradecer pelo mínimo.
Porém, após as parcelas delimitadas, novamente outra baixa. Dessa vez, em definitivo, sem possibilidade de contestação. Contudo, o povo, de novo, não se calou. A boca, a mesma que sente fome, também protesta. E assim, novamente o governo cedeu a mais uma liberação do auxílio emergencial. Nessa nova etapa, o valor variado de R$ 150 a R$ 375 e mais alguns critérios soavam extremos.
Dessa vez, para ter a oportunidade de receber o novo benefício, várias restrições foram impostas. Renda familiar abaixo de meio salário mínimo por pessoa; somente um membro por casa com o direito ao recebimento do valor. Os critérios eram quase que uma discurso indireto: “Não queremos pagar mais nada. Se virem nos 30 com essa merreca”.
Segundo a diretora da Rede Brasileira de Renda Básica, Paola Loureiro, a nova rodada do auxílio emergencial expõe o desinteresse do governo com a população necessitada:
“O novo auxílio emergencial e seus critérios foram implementados na PEC com o teto de R$ 44 bilhões, apenas para camuflar uma série de maldades do governo. Desse modo, o benefício foi inserido dentro desse leque de ‘possibilidades’, passando a se limitar. O valor oferecido é irrisório, levando em conta que 45% ou 46% dos beneficiários recebem apenas os R $150 enquanto que uma mãe solo recebe em torno de R$ 250 a R$ 375″
Paola Loureiro, da Rede Brasileira de Renda Básica
Recentemente saíram os dados da primeira parcela do auxílio emergencial em 2021 e, se comparamos ao ano anterior, houve uma queda considerável no número de aprovados: de 68 milhões para 39 milhões de pessoas. Se levarmos em conta o desemprego, a fome e as condições atuais no Brasil em tempos de coronavírus, notamos quão emergente esse levantamento é.
“Vivemos uma condição piorada, porque não se permitiu que pessoas que perderam membros que sustentavam a família, ou pessoas que se desempregaram nesse meio tempo, pudessem fazer novas inscrições para o auxílio”, explica Paola.
“Estamos em uma situação absurda, de aprofundamento das desigualdades e da vulnerabilidade da população. Esses novos critérios são como uma prensa contra o cidadão. É uma expulsão indireta do programa para boa parte dos brasileiros que ainda necessitam do benefício”, complementa.
Para embasar essa matéria, procurei pessoas que antes recebiam o auxílio e, assim como meus pais, por conta dos novos critérios, foram reprovadas. Na minha casa, mesmo necessitados, meu pai e minha mãe não foram aprovados e a culpada, pasmem, fui eu. Sim, eu: culpada por acordar todos os dias às 7 horas da manhã e trabalhar; culpada por ter a carteira assinada.
Bom, pelo menos esse foi o critério usado para a negativa no site do Dataprev: “Seu benefício não foi aprovado, pois mais de um ente familiar recebe acima de meio salário mínimo”. Na verdade, em minha casa, somente eu trabalho. Pelos critérios, o fato de eu ganhar R$ 1.600 por mês, se dividirmos para 3 pessoas (que é o número de residentes em minha casa), é como se cada um recebesse acima de meio salário mínimo. Então, logo, não veio a aprovação. Vale lembrar que, com o meu pagamento, pago minha faculdade, contas de água, luz e internet, ficando apenas com o mínimo para os itens básicos.
Muitas famílias também sofreram os mesmos impactos. Inclusive, encontrei uma situação semelhante à minha. É o caso do cozinheiro Marcos André Ferreira, morador de 50 anos do bairro de Taipas, zona Norte de São Paulo, que teve o auxílio negado por ter um filho assalariado que reside no mesmo teto.
“Quando fui aprovado na primeira análise do auxílio, eu fiquei muito feliz. Pude ajudar nas despesas de casa, pagar uma água, uma luz, comprar comida para dentro de casa. Era uma renda que ajudava muito. Agora, fui negado porque meu filho trabalha, sempre trabalhou, mas os critérios não permitem. Porém, eu prefiro que ele esteja empregado. O valor de R$ 150 hoje em dia só se compra um gás, ou paga uma conta e olhe lá, porque as contas estão caras. Meu filho empregado ajuda bem mais”
Marcos André Ferreira
Curiosamente, o desabafo do senhor Marcos é parecido com o de meus pais e de milhares de brasileiros, inclusive o de minha mãe, que disse uma frase que reflete o meu modo de pensar:
“Hoje, nós dependemos deles, mas amanhã todos eles dependerão de nós, nas urnas”.
Essa frase me impactou bastante, pois mostra claramente a insatisfação do cidadão. Se eu tivesse a oportunidade, perguntaria aos governantes se eles seriam capazes de sobreviver com R$ 150. Se, em algum momento, consultaram os preços de itens básicos do país, antes de propor esse valor como “auxílio”.
Até a produção desse texto, em breve pesquisa, apurei que o arroz está em torno de R$ 15 a R$ 28; o gás a quase R$ 90; enquanto que a luz, com seus aumentos abusivos a cada mês, segue beirando a casa dos R$ 150 a R$ 200, isso para uma família que consome energia de forma honesta.
“Segundo os dados do Dieese, o valor de R$ 150 permite que uma família coma por dia meia banana, meia batata, meio copo de leite e meio bife, sem considerar todos os outros gastos necessários dentro de casa. O debate falso que o governo promove em relação à comparação dos valores médios do Bolsa Família é uma distorção do que o mundo tem debatido sobre renda emergencial advindo da pandemia”, finaliza Paola.
Pensando a partir desse ponto de vista, é nítido que a realidade econômica do Brasil é desigual. Apesar de sermos um país repleto de riquezas, existe um desinteresse governamental. Pode-se pensar que reclamar soa como ingratidão, mas não. É mais do que isso, é indignação. É revolta. Mas, enquanto estamos atolados nessa situação, seguimos lutando, procurando imponderavelmente soluções para essa fase tão difícil.
*Karine Gomes é estudante do último ano de jornalismo pela Universidade Cruzeiro do Sul e moradora da região do Grajaú, Extremo Sul de São Paulo. Desde a infância, esteve voltada a questões sociais, antes como beneficiária, hoje no campo de fala
Redação PEM
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Enquanto existir “pobre de direita”, o trabalhador sempre será escravo.
[…] da economia solidária e da educação popular, e começou em 2019. Com a pandemia e os cortes no auxílio emergencial, o aumento do desemprego e do preço da comida, a ação se intensificou para amenizar a […]