Colaboração de André Santos. Foto em destaque: Nayara Rodrigues
O trajeto de quem passa pela travessa Leolinda de Figueiredo Daltro para chegar até a avenida Souza Bandeira ganhou elementos novos no último ano. Antes degradada, a passagem localizada na Vila Nhocuné (zona Leste de São Paulo) agora sedia o Centro Cultural Viela em Dia de Lua. Do lado de fora, um museu a céu aberto apresenta grafites, muralismo, mostras fotográficas e literárias. No período anterior à pandemia, crianças da comunidade recebiam aulas de violão. Com o distanciamento, o espaço passou a abrigar uma biblioteca. É a arte posta no caminho da população.
Nascido a partir do desejo dos músicos e irmãos Renato e Ronaldo Gama, o centro cultural é um projeto social, educativo e literário conduzido pelo Coletivo Sá Menina. “Pensamos na possibilidade de transformar esse espaço em um local que tem uma função social e, com a ajuda das pessoas da comunidade, nós conseguimos”, conta Ronaldo Gama, 43 anos.
Localizada no distrito de Artur Alvim, nos anos 1990 a Vila Nhocuné figurava em programas policiais como um dos mais perigosos da capital, mas o bairro de 35 mil habitantes virou local de construção, acolhimento e aprendizagem – um verdadeiro quilombo com tecnologias de afeto e resistência, como define o próprio coletivo.
Com cerca de 30 colaboradores que trabalham direta ou indiretamente, o Viela em Dia de Lua iniciou suas atividades em 2017 com a gravação do clipe “Neguinha sim!”. O centro cultural ganhou formas no começo de 2020, pautando o direito à cidade para encurtar a distância que os moradores da região precisavam percorrer para vivenciar experiências em centros artísticos, visto que os polos culturais mais próximos estão a cerca de 7 quilômetros de distância.
“Eu sou da Nhocuné, tenho orgulho e posso transformar a vila com os meus amigos. Tem uma coisa na periferia que é incrível: quando você sabe alguma coisa, você já quer passar pra frente. Você aprende 2 acordes no violão e já quer ensinar 2 acordes pra todo mundo. Você aprende a escrever um verso e já quer dar uma oficina de poesia. Isso é muito da gente. Como dizia a Erundina, a gente é fruto de mutirão, então se a gente sabe um pouquinho, logo a gente quer compartilhar esse pouco com todos. É a nossa herança”
Renato Gama, 45 anos
Espaço de leitura
Com as aulas presenciais suspensas, o coletivo Sá Menina precisou pensar e repensar formas de manter o projeto ativo. Com o incentivo da Lei Aldir Blanc, um programa de auxílio emergencial dado aos profissionais da cultura, o grupo conseguiu abrir uma biblioteca comunitária. Inaugurada em dezembro de 2020, ela funciona de quarta, sexta e domingo, das 10h às 12h, e é aberta para que o público acesse e retire as obras por empréstimo dentro das medidas de restrição recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
“Essa biblioteca é muito especial, porque os moradores queriam entender aquele espaço como um lugar deles. E é impressionante: minha mãe, a dona Vera, que é a bibliotecária, fica impressionada com o interesse dos jovens que vão lá”, afirma Ronaldo.
O acervo conta com obras de autores do próprio coletivo – como os escritores Paulo Rafael, coordenador pedagógico; e Almir Rosa, ator e colaborador -, além de livros doados por vizinhos e admiradores do projeto.
“Eles [o poder público] só chegam nos lugares distantes pra eliminar e nunca pra construir. O poder público não traz a arte, cultura e nem o esporte”, aponta Paulo, 67. “Não vale a pena esperar por eles. Eles não gostam da gente, não se preocupam com a gente, e se não fizermos esse movimento, ninguém fará”, desabafa.
Apesar de recém-inaugurado, o desejo do coletivo de fornecer esse espaço para a comunidade é antigo. Afinal, essas ações mostram novas direções para que as crianças da região possam transformar sua trajetória com base na literatura e no conhecimento.
“A arte e a cultura, principalmente dentro de um contexto periférico, são sementes que, por vários motivos, demoram um pouco mais pra se desenvolver. Então é um compromisso nosso expandir isso. Tem muitas lutas e buscas que a gente se dedica diariamente que sabemos que não é pra gente”, comenta Almir, 44 anos, escritor do livro “Almanaque Rosa”, que foi lançado na inauguração do Espaço de Leitura.
Planos para o futuro
O Centro Cultural Viela em Dia de Lua sonha com uma expansão de atividades. Após a pandemia, o grupo quer iniciar a realização de oficinas de teatro, exibições de filmes, a retomada das aulas de violão e apresentações musicais. Já existem colaborações com outros grupos em praticamente todas as regiões da capital, e essas integrações poderão render cada vez mais frutos para as periferias da cidade.
“O sonho maior é ver a geração mais jovem com mais facilidade para poder chegar à arte do que nós tivemos. O sonho é educar pela arte. É legal quando você vê a meninada na biblioteca ou apreciando os grafites. Eles vão carregar o nosso sonho. A periferia não tem que ser lugar de morte, tem que ser lugar de vida e a gente tem muita pra mostrar. Nossa função, seja como educador ou como artista, é tentar movimentar essa história. Nosso coletivo começou com um livro e um CD e, juntos, fomos construindo até ser o que é hoje”, acrescenta Paulo.
Redação PEM
1 Comentário
Parabéns,exelente iniciativa.