“Vejo uma luz no fim do túnel para a questão da moradia”, diz Raquel Rolnik, ex-relatora da ONU

“Vejo uma luz no fim do túnel para a questão da moradia”, diz Raquel Rolnik, ex-relatora da ONU

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Foto MTST

Itaquera, Jardim Ângela, Osasco, Grajaú… Depois de acordar São Paulo com manifestações em diversos pontos da capital na semana passada (dia 15), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) deve parar a cidade novamente nesta quinta-feira (22) e até durante a Copa do Mundo, se necessário, conforme prometeu o coordenador do movimento Guilherme Boulos.

Marcado para as 17hs no Largo da Batata, em Pinheiros, o ato “Copa sem povo, tô na rua de novo” reivindica mais verbas para a saúde, transporte público gratuito, educação pública de qualidade, justiça, soberania durante a Copa e, principalmente, o direito à moradia, garantido na Constituição Federal de 1988. Veja detalhes do evento aqui.

“É preciso entender que o direito à moradia não é ter simplesmente casa com teto e quatro paredes, mas sim ter uma porta de entrada para outros direitos, como cultura, educação, alimentação e trabalho”, explica a urbanista Raquel Rolnik, ex-relatora da Organização das Nações Unidas (ONU) para habitação adequada, em entrevista ao Periferia em Movimento e palestra durante o curso “De Teto e de Afeto”.

Segundo Raquel, há cerca de 250 mil famílias sem moradia em São Paulo, enquanto 400 mil imóveis estão vazios. Como a meta da Prefeitura é garantir apenas 55 mil moradias até 2016, muitos cidadãos exercem esse direito na marra.

Desde 2007, quase 300 famílias vivem em um edifício abandonado há mais de 20 anos na rua Mauá, próximo à Luz, na região central da cidade. Após ameaça de despejo, a Secretaria Municipal de Habitação anunciou a compra do imóvel para beneficiar os moradores.

“Não vamos aceitar que a moradia seja tratada como mercadoria, porque é um direito do cidadão e tem que ser atendido”, diz Seu Nelson, coordenador do Movimento de Luta por Moradia do Centro. “É uma luta de anos, pois não é bonito nem decente morar em ocupação. Não temos privacidade”.

Do ano passado para cá, novas ocupações surgiram nas periferias, como a Vila Nova Palestina, o Jardim da União, a Faixa de Gaza, a Ocupação Esperança e a Copa do Povo – esta, mais recente, a 3km do estádio onde acontecerá a abertura do mundial de futebol, onde a torcida organizada Gaviões da Fiel promete realizar uma atividade com a bateria de sua escola de samba.

Apesar de questionarem as práticas políticas atuais, Raquel Rolnik não enxerga nesses movimentos o surgimento de lideranças políticas capazes de ocupar o poder. Por isso, a questão da moradia não deve ser solucionada tão cedo.

Porém, a longo prazo, o problema deve se tornar menos complexo e será possível discutir a cidade para quem já está aqui.

“Diminuiu radicalmente o adensamento populacional, o que implica em uma luz no fim do túnel porque a demanda de espaço será muito menor”, diz Raquel. “Mas não dá para trabalhar política habitacional com uma solução única, como faz o Minha Casa Minha Vida, que até pode ser vantajoso para um casal recém-casado mas não compensa para todo mundo pagar 30 anos por um imóvel”.

Remoções ou construções em massa não adiantam. Casos como os da Favela do Moinho (no centro de São Paulo) ou do bairro Jardim Pantanal (na várzea do rio Tietê) precisam ser resolvidos em um artesanato com a participação dos moradores.

 

Cidade-puxadinho

A partir do final do século 19, a cidade de São Paulo entou em um processo de urbanização acelerada e desenfreada, com o paradoxo de uma cidade legal e outra clandestina, como aponta Rolnik.

Com a expansão da cultura cafeeira no Estado e o acúmulo de capitais que fomentou a industrialização em larga escala, a capital chegou aos anos 1930 com mais de um milhão de habitantes. O crescimento populacional intenso propiciou uma demanda por terrenos e habitações, contribuindo com o aumento dos preços.

Ao definir diretrizes para a criação de bairros elitistas, como Higienópolis, por exemplo, à época a Prefeitura de São Paulo também estabeleceu onde a pobreza se instalaria.

Enquanto o Sudoeste da cidade (onde hoje ficam Paulista, Jardins, Pinheiros e Vila Olímpia) concentraria paisagens ricas e valorizadas, as periferias se caracterizavam como regiões pobres e desvalorizadas, marcadas pela irregularidade ou extra ilegalidade. Tanto favelas quanto casas populares autoconstruídas nas periferias da cidade se encontram, portanto, no mesmo campo da irregularidade.

“A marca das construções da cidade é de arranjos. Não pode ser chamado de ilegal porque, senão, todo mundo que mora na favela estaria na cadeia”, explica Raquel. “Há um enorme terreno de ambiguidades. Não poderia construir, mas o pessoal foi ficando, consolidando…”

Esse processo de consolidação é dinâmico. Bairros considerados periféricos nos anos 1950, como Vila Maria, ganharam estrutura ao longo das décadas com a luta dos moradores e hoje se integram ao centro.

A política pública habitacional também teve um papel fundamental na expansão das periferias entre as décadas de 1960 e 1980, com a construção das Cohabs, por exemplo.

“Já nos anos 1990 e 2000, a consolidação das periferias virou a grande moeda de troca das eleições, com promessas de levar água e luz, transporte, escolas, etc”, diz Raquel.

Mas a criação desses bairros-dormitórios, sem infraestrutura, gerou novos problemas – principalmente no início dos anos 1990, com a adoção de políticas neoliberais no Brasil.

O desemprego em massa minou os sonhos de milhares de migrantes, que vieram para São Paulo em busca de uma vida melhor. A presença da violência, com o fortalecimento do tráfico de drogas e a repressão do Estado por meio da polícia, ampliou o problema e resultou em um verdadeiro genocídio da juventude pobre, negra e periférica.

“A questão da cor é também um fator de vulnerabilidade”, diz Raquel. “Essa invisibilidade da questão étnica é uma dos estruturadores do racismo, que é exatamente fingir que ele não existe”.

Impedida de usufruir a cidade, a população das periferias se mobilizou para reocupar o território urbano, por meio do hip hop e de outras manifestações culturais.

As intervenções de graffiti e pixação em pontes e edifícios, a presença de uma massa de motoqueiros a circular por entre os carros parados nos congestionamentos e as ocupações de prédios vazios no centro de São Paulo são os maiores expoentes disso.

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