Por Aline Rodrigues (texto e fotos)
O Centro de Referência e Defesa da Diversidade é um lugar raro na cidade de São Paulo. Em uma sociedade que não se dá conta de sua postura preconceituosa e exclusiva, ou se dá conta, mas não se importa, o CRD fortalece um público marginalizado. “Eu costumo dizer que eu gostaria que o CRD acabasse. Que pudesse ter a boa recepção do nosso público em todos os serviço do município, mas enquanto isso não existe, o nosso papel é fundamental”, lamenta Eduardo Luiz Barbosa, coordenador do Centro de Referência e Defesa da Diversidade.
Localizado próximo a Praça da República, na região central da cidade, tem uma equipe de 15 funcionários, sendo 5 técnicos especializados – 2 psicólogos, 2 assistentes sociais e 1 advogado. Outros 4 profissionais são orientadores socioeducativos que fazem o primeiro atendimento e o acompanhamento dos usuários enquanto utilizam os serviços e os recursos do CRD. Todos os profissionais integram o grupo Pela Vidda/SP (Valorização, Integração e Dignidade do Doente de aids), organização não-governamental sem fins lucrativos.
São atendid@s travestis, transexuais, gays, lésbicas, profissionais do sexo, pessoas vivendo com HIV/Aids que estão em situação de vulnerabilidade social. E trabalhando com o público LGBT identifica-se outras exclusões, como o caso de nordestinos, negros, moradores de rua.
“As demandas são muito grandes para o equipamento que a gente tem”, diz Eduardo. Ele conta que o atendimento previsto pelo convênio com a prefeitura de São Paulo prevê mil atendimentos por mês, mas eles realizam em média 300 a mais. Isso sem contar as sensibilizações que fazem quando vão a campo, além de apoio dado por telefone e redes sociais.
O serviço importante de desdobramento desses atendimentos também não é previsto pelo orçamento do município e o comprometimento dos funcionários faz a diferença. “A gente estabelece vínculos com o restante da rede para apoiar o usuário com o serviço de saúde, educação, trabalho”, destaca o coordenador.
Para Brunna Valin, orientadora socioeducativa do CRD, o grande diferencial é o trabalho humanizado que realizam. “Aqui eles são vistos, lá fora não”. Brunna, que vive com a aids e é transexual, reconhece a importância do seu papel. “A Brunna estando no Centro de Referência é de verdade uma referência e como orientadora posso trocar vivências com os usuários me colocamos como igual”.
Quando o usuário percebe esse acolhimento, ele fica. E ficando, diversas possibilidades são oferecidas. “Eles nos dizem ‘eu não sei nada, porque eu estive à margem’, era profissional do sexo ou vendia droga. Então a gente tem as oficinas que dão empoderamento”, conta a orientadora. São atividades como cursos de DJ, cabeleireiro, maquiagem, inglês, Língua Brasileira de Sinais (Libras), cosméticos artesanais, expressão corporal, ioga, alfabetização.
“Aqui eles me ajudam em várias questões. Gosto de conversar com os psicólogos sobre o que acontece na noite. Depois que converso me sinto mais leve. Também já fiz a oficina de DJ, participo da de produtos artesanais, à noite estudo inglês e também sou modelo nas aulas práticas de cabeleireiro”. Andie Almeida tem 27 anos e é do Amazonas. Desde 2010 mora em São Paulo, mas já veio para a cidade outras vezes.
“É esse empoderamento que nós damos e esperamos ser tão significantes que cada um vá em busca de uma qualidade de vida, de um novo lar, crie perspectivas. Essa é a devolutiva que a gente precisa. Que eles passem por aqui e voltem com novidades”. Mas Brunna alerta que “se ele for e voltar com outras demandas, nós vamos trabalhar com ele de novo. Ele não vai ficar esquecido”.
Eduardo diz que uma das coisas que mais aparecem é a questão do nome social. “A gente faz o encaminhamento, só que é muito lento”. Ele lamenta que igual acontece com a cirurgia de transexualização. “É outro problema, porque o SUS tem cerca de 200 pessoas na fila e o atendimento é de 4 por mês. Então a gente cria a perspectiva na pessoa e a vontade de fazer as mudanças, mas não tem uma boa parceria dos serviços públicos para realizar aquilo que é de direito e desejo da pessoa”.
O sucesso nem sempre é possível
“O trabalho aqui é de formiguinha”, reconhece Eduardo. “O trabalho feito no Centro de Referência é quase uma reeducação para a cidadania”. Para muitos que moram na rua é difícil entender que tem direitos. “Direito do que? Ter documento, mas para que?”.
“O nosso papel é ajuda-los a encontrar oportunidades e mostrar que por mais dificuldades que eles tenham, eles precisam continuar lutando”, diz o coordenador do Centro de Referência. Alguns se encorajam a tal ponto que acabam reforçando o time na defesa de direitos do público LGBT. Participam de conselho de política LGBT do município, conselho de saúde, vão para a reunião da Associação da Parada do Orgulho LGBT.
A complexidade do indivíduo
São diversas histórias vividas antes de chegaram até o Centro de Referência e Defesa da Diversidade. As demandas são diversas e cada caso é tratado com respeito e de forma personalizada.
Carla Edson, apesar de usar o nome feminino, não se considera uma travesti. Prefere se definir como uma “gay bombada”, por já ter feito cirurgias para implante de silicone. Ela frequenta o Centro de Referência desde 2010, quando saiu do sistema prisional depois de cumprir pena por assassinato. Foi réu confesso e teve bom comportamento, por isso termina de cumprir sua pena no regime aberto até dezembro de 2014.
Mas esse não é o resumo de sua vida. Ela é de Recife e veio para São Paulo com mais 11 pessoas, motivada por uma promessa de trabalho na cidade que oferecia carteira assinada, moradia. Quando chegou, ainda em São Bernardo do Campo, descobriu que o que prometeram era tudo mentira. “Queriam levar a gente para a Europa para prostituição. Começaram a pegar nossos documentos, aí ficamos com medo e fugimos da cafetina”. Sim, Carla que hoje mora no bairro de Santa Cecília e divide seu apartamento com mais quatro pessoas foi vítima do tráfico de pessoas.
Superada essa fase, já trabalhou de auxiliar de serviços gerais, ajudante de cozinha, garçonete e camareira e está esperando a resposta de um trabalho de carteira assinada. Apesar disso, seus planos é voltar para sua cidade no começo do ano que vem. “Sai de Recife para buscar em São Paulo o que na época lá não tinha, mas agora tem. Se eu tivesse esperado um pouco minha cidade crescer, evoluir, eu não estaria aqui. Eu digo que tenho trauma de São Paulo e terei pelo resto da vida. No dia em que eu for embora eu quero esquecer que pisei aqui”.
PRÓXIMA REPORTAGEM: Brunna Valin é transexual, HIV+ e ativista pelos direitos da população LGBT. Conheça sua trajetória até se tornar orientadora socioeducativa do Centro de Referência e Defesa da Diversidade.
Redação PEM