Reportagem de Elisabeth Botelho. Colaboração e edição de texto: Thiago Borges. Arte: Rafael Cristiano
Top reto e conjunto plush com calça e casaco, tudo no pretinho básico. Derlyane Silvestre da Silva se sente poderosa quando tá trajada no “kit Ajuliacosta”, conjunto de roupas da marca criada pela artista de mesmo nome. Nos fones dela, tocam hits da ídola, como “Homens como você” e “Não foi do nada”. Para Derly, as músicas a estimulam a lutar por seus objetivos sem ficar paralisada pelas dificuldades da vida.
O discurso tá muito presente nas letras de trap, subgênero do rap que ocupa o topo das paradas nas plataformas de streaming como Spotify, refletindo e ao mesmo tempo influenciando visões de mundo e comportamentos da juventude periférica atual, que nasceu a partir de 1995 e cresceu conectada na internet e com grandes transformações, como maior acesso à educação e ao consumo.
“Os artistas falam muito sobre isso, como é o sistema e como o sistema reage em relação ao jovem de periferia. Então, eles estão sempre incentivando a correr atrás do seu e não olhar para trás e nem para o lado. Só vai” – Derlyane, 21 anos, moradora do Jardim Mirna, no Grajaú (Extremo Sul da cidade de São Paulo).
Favorita de Derly, Ajuliacosta (se escreve assim mesmo, tudo junto) é uma artista em ascensão. Oriunda de Mogi das Cruzes, ela acumula mais de 260 mil ouvintes por mês nas plataformas de streaming e narra o protagonismo de mulheres em situações em que é comum a presença do homem em locais de poder, como no mundo dos negócios, retratado em “O suficiente”.
Ritmo de vitória
Rapper de formação, Ajuliacosta faz sucesso quando canta músicas do trap, que surge nos guetos dos Estados Unidos na década de 1990 como subgênero do rap marcado principalmente por um estilo um pouco mais lento que o boombap e com sonoridade mais suave e até dançante. Lá fora, Cardi B e Travis Scott são nomes conhecidos da vertente.
Ao desembarcar no Brasil, o trap se mistura com culturas locais, como o funk e outros ritmos de matrizes africanas e indígenas. “E vai se criando outros subgêneros, por isso tem tantos. Ele chega daquele jeito, mas quando os artistas de lá vão reproduzir, vão reproduzir com outras sonoridades”, explica o produtor musical André Artplay, da Vila Natal, também no Grajaú.
Em agosto deste ano, um festival reuniu 26 atrações do trap na Cidade Tiradentes, zona Leste de São Paulo, em comemoração aos 50 anos do movimento Hip Hop. Mas o trap também está presente em espaços de concentração de riqueza, como o Lollapalooza e o The Town, que aconteceu em setembro.
“Esse movimento cultural tem a todo momento lutado e reivindicado por espaços de protagonismo, seja ocupando lineup de festivais grandes a ocupar espaços de reconhecimento” , explica o pesquisador Wes Xavier, 27, especialista em comportamentos de consumo periféricos e cria de Parelheiros (Extremo Sul paulistano).
Para o musicista Big 011, a vertente cativa o público porque injeta confiança nas pessoas.
“É um gênero que aborda muito a sua autoestima, o jeito de você se vestir, de levantar a cabeça e continuar a fazer o que você gosta, não ligar para a opinião dos outros. Você sempre tá bem consigo mesmo”, diz Big 011, morador do Jardim Monte Verde, no Grajaú.
“A favela venceu”, ao menos no contexto de cada indivíduo. Isso se expressa na afirmação das conquistas em músicas de Veigh ou Kayblack, por exemplo.
“Contextualizar as vivências das pessoas periféricas do mundo significa que o artista tá projetando a vida dele no mundo, falando que ele existe (…) A música periférica não conta histórias tristes, ela reflete sobre as histórias tristes e também promove histórias positivas com projetos de vida legais”, diz Wes.
Para ele, o conteúdo também reflete o lugar de reconhecimento do homem preto no Brasil e na indústria musical. Falar dos bens que possui, das roupas de marca e das festas são parte da construção da autoestima.
Possibilidades de estar no mundo
“Não somos fã de canalha
Os que nos faz de escada
Nois faz eles falar oh
Nunca vai me achar onde me deixou
Sempre em movimento eu sigo uo oh
Seu problema é seu não é comigo” – “Diretoria”, de Tasha e Tracie
As gêmeas Tasha e Tracie, do Jardim Peri, zona norte de São Paulo, ocuparam recentemente o palco principal do The Town. As rappers, que também cantam músicas da vertente trap, desconstroem a imagem da mulher de favela como secundária em todos os papéis sociais. Para o pesquisador Wes, a atuação delas tem sido fundamental na construção da autoestima principalmente de adolescentes de 12 ou 13 anos, com falas afirmativas como “sou bonita, eu me percebo”.
“É uma construção de autoestima completamente desvinculada ao lance de precisar ter e possuir coisas. É sobre um letramento de individualidade, de projeto de vida distante de um mundo capitalista”, analisa. Ele complementa que, enquanto homens estão exaltando seus prêmios nas letras, as mulheres estão em outra jornada. Da mesma forma, a presença de artistas LGBTQIA+ na cena também demarca lugares.
“A gente está cantando o que na maioria das vezes a gente quer ser” – Estrela, 22, rapper e estilista da Brasilândia (zona Norte de São Paulo).
O empoderamento das mulheres no hip hop fortaleceu para que Estrela ingressasse no trap em 2019. Ela diz que o trap feminino está preocupado em mostrar o que estão fazendo e os porquês estão fazendo. E, na maioria das circunstâncias, as pessoas não imaginam do que já está sendo feito por essas minas na cena do trap, rap e do movimento hip hop como um todo.
“O trap é uma coisa mais atual, mais geração Z. Então, você pode falar de coisas que não são só sobre aprendizados, mas como eu sou, como eu estou vestida”, diz ela.
Derly, que é consumidora do trap, percebe essa diferenciação e a transformação dentro do próprio subgênero. “Tem muita mina tentando conquistar o mesmo espaço do homem e sofre um julgamento muito grande. Na cabeça do homem, só ele pode falar putaria e isso e aquilo, e a mulher não pode. E elas estão quebrando essa barreira de uma forma muito boa”, completa.
Elisabeth Botelho, Thiago Borges, Rafael Cristiano