Intolerância religiosa e alto preço de imóveis empurram terreiros para bordas de São Paulo

Intolerância religiosa e alto preço de imóveis empurram terreiros para bordas de São Paulo

Sem espaço na região central, casas de umbanda, candomblé ou tambor-de-mina são forçadas a migrar para periferias e áreas rurais da metrópole

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Por Thiago Borges. Revisão: Vênuz Capel. Fotos: Divulgação

Após boa parte da vida dedicada ao candomblé, Mãe Gê de Ogum finalmente plantou seu axé. Genilce dos Santos, de 62 anos, reuniu as forças dos orixás para erguer seu barracão em Marsilac, no Extremo Sul de São Paulo. “Foi orixá quem determinou que fosse aqui”, diz ela, que é responsável pelo Asé Alaketu Ilê Ogum Alada Meji.

Iniciada na religião há quase 40 anos e ialorixá há mais de 30, Mãe Gê (foto ao lado) fundou seus assentamentos somente em 2014 porque antes não tinha um imóvel próprio. “Eu só posso plantar axé em um lugar que é meu, que depois eu não vou sair mais”, diz ela, que denuncia essa migração forçada. “As casas de santo estão saindo do centro por conta da intolerância”.

Os assentamentos são essenciais para o exercício do sagrado em muitas religiões de matriz africana, mas a prática esbarra em situações muito terrenas e que se encontram na encruzilhada de uma sociedade racista: a especulação imobiliária, que encarece o preço dos imóveis nas regiões mais centrais da cidade e expulsa pobres para áreas periféricas; e a intolerância religiosa, que perturba o sossego de praticantes dessas manifestações.

A preservação de práticas e lugares de culto dos povos de santo é uma das propostas da Plataforma de Lutas pelo Direito à Cidade. Lançado em junho de 2022 por diversas entidades da sociedade civil, o documento propõe a implementação, fomento e garantia de políticas para assegurar o respeito e permanência das manifestações e locais sagrados.

Isso porque o poder público faz pouco para assegurar os ritos religiosos e a mudança de endereço de terreiros é uma constante. Apesar da liberdade religiosa ser assegurada pela Constituição Federal de 1988 e por uma infinidade de legislações, inclusive a lei paulista de combate à discriminação religiosa, quem é adepto de candomblé e outras manifestações de origem afrobrasileira está mais vulnerável a violências por conta da fé. Os casos de intolerância contra praticantes de religiões de matriz africana representaram 65% das denúncias feitas em 2020 ao Disque 100 – serviço do governo federal para receber denúncias de violações de direitos humanos.

Dos cheiros aos sons dos tambores após as 22h, as justificativas são inúmeras para constranger e até chamar a polícia para interromper encontros. Durante 25 anos, Mãe Gê fazia apenas festa para Ibejis e tocava atabaque para Exu e os caboclos na casa em que vivia com a família. O imóvel localizado na Cidade Ademar (periferia da zona Sul da cidade), foi cedido pela patroa do marido de Genilce. Mas quando ele faleceu, a proprietária pediu o espaço de volta motivada pelo falatório de uma vizinhança que não tolerava os ritos.

Despejada, Mãe Gê morou por 2 anos em um imóvel alugado na Vila Mascote, onde também não conseguia fazer seus encontros. Nesse período, saiu em busca de um espaço próprio e ganhou um terreno localizado na Pedreira, também na zona Sul. Porém, com receio de sofrer intolerância no novo local, ela vendeu o imóvel e seguiu procurando. Mesmo com dinheiro pra comprar, teve de lidar com a desconfiança, incredulidade e preconceito em muitas imobiliárias por onde passou. “Eles acham que o preto não pode ter nada, não pode ser nada na concepção da sociedade”, aponta.

Mãe Gê, enfim, comprou um sítio de 10 mil metros quadrados na zona rural paulistana. No amplo terreno, também ergueu a residência em que mora com o filho e o neto, uma cozinha e um espaço de convivência para quem frequenta os encontros. Sem tantas casas por perto, ela reclama de algumas pessoas da vizinhança que sequer falam com ela – também por racismo religioso. E com apenas 3 linhas que passam na estrada, o ônibus demora e dificulta a chegada das pessoas ao terreiro.

Sossego

Assim como Mãe Gê, Sandra Aparecida Furtado, 48 anos, se afastou da área urbana para cultuar os voduns com sossego. Responsável pelo Kwê Mina Odan Axé Boço Da-hô (foto de capa da matéria),  Sandra de Xadantã é nochê do tambor-de-mina, uma religião de matriz africana que é mais praticada no Maranhão e menos difundida no Sudeste brasileiro.

A casa de Sandra teve origem em Diadema (na região metropolitana de São Paulo) e, desde 2011, ela deu continuidade ao trabalho com seu próprio terreiro no Piqueri (zona Norte). O espaço funcionou ali por 5 anos e voltou para Diadema, onde Sandra (foto abaixo) ficou 2 anos  com rituais internos.

A mudança definitiva ocorreu em 2017, quando alugou um sítio em Juquitiba que acabou comprando no ano seguinte. “Algumas pessoas não querem mais alugar casas para terreiros por conta da intolerância e, quando alugam, vem cheio de restrições tanto financeiras como de uso do espaço”, diz ela.

Localizado a 80 quilômetros do Centro de São Paulo, o espaço permite as celebrações com mais tranquilidade. Porém, exige um esforço extra de cerca de 70 participantes que, dependendo de onde saem, demoram de 2 a 3 horas para chegar ao terreiro.

Ter o espaço próprio é fundamental para conservar a tradição, mas a mudança de local não é simples. “O tempo para locomover os voduns é outro, pois temos que ter rituais para este deslocamento”, explica Sandra.

Casa própria

O jornalista Luiz Alberto Carvalho, 43, aponta que o assentamento demanda uma certa permanência no imóvel. “[Quando você faz o assentamento], você energiza uma coisa que vai funcionar como uma ‘bateria’, então para ser retirada ela precisa ser desenergizada. Isto é, você precisa desenterrar ou tirar da parede. É um procedimento que não é simples”, observa.

Luiz é dirigente da Tenda de Umbanda Amor Maior. O espaço religioso foi aberto há 5 anos e sempre funcionou na residência do próprio Luiz – primeiro, em um imóvel alugado no Belenzinho (zona Leste) e, mais recentemente, em uma casa própria que é herança de família no bairro de Jordanópolis, em São Bernardo do Campo.

Apesar dos olhares preconceituosos e de sofrer até um abaixo assinado feito por vizinhas católicas e evangélicas contra a permanência do terreiro, Luiz fez seus assentamentos nessa casa que é própria. Mas reconhece que o ideal mesmo é que sua residência fosse separada do lugar de culto. “O banheiro que os filhos usam é o banheiro que uso no dia a dia. A cozinha é a mesma do dia a dia, e nem sempre isso é agradável”, diz ele.

As giras quinzenais reúnem cerca de 10 pessoas e acontecem na garagem. Luiz tira o carro, afasta o varal e coloca cadeiras para atendimentos que são agendados previamente. “A especulação imobiliária piora o que já é ruim. O terreiro só funciona na minha casa e não em outros lugares porque não nos aceitam”, diz ele.

Luiz encontrou imóveis adequados para a tenda de umbanda, mas a negociação trava quando as pessoas descobrem a finalidade. “Teve uma senhora que falou: ‘se fosse uma igreja, tudo bem’”, lembra. Os únicos espaços em que isso não é uma questão têm um custo muito alto: o aluguel varia de R$ 2,5 mil a R$ 3,5 mil por mês. Por isso, ele deve continuar dividindo a moradia com o local de culto por mais um tempo – ao menos, até  a definição do segundo turno das eleições presidenciais e de um cenário socioeconômico mais favorável para dar um passo maior.

Para o advogado Jackson Passos, o aluguel se tornou tão proibitivo que ele achou melhor comprar um espaço para a Tenda de Umbanda Lírio de Aruanda. “O valor do aluguel era muito alto e fez com que fosse impraticável ficar com locação”, diz.

A casa que ele dirige há 15 anos já funcionou em 3 imóveis alugados na região. No último deles, o proprietário aumentou o aluguel de R$ 4,3 mil para R$ 6,5 mil por mês. Sem condições de bancar, Jackson juntou suas economias, buscou doações e conseguiu dar entrada na casa própria. Com a contribuição mensal de R$ 70 de cerca de 60 participantes, ele consegue pagar as prestações e continuar atuando na região da Vila Diva (zona Leste de São Paulo).

Ao contrário das outras pessoas entrevistadas nesta reportagem, Jackson não precisou migrar, mas ele sabe que isso é uma exceção. “Muitos colegas meus já sofreram preconceito, violência e tiveram que mudar de bairros mais nobres para a periferia. Alguns até chegaram a fechar”, completa.

Este conteúdo foi produzido no âmbito do projeto Planeta Território, uma iniciativa da Território da Notícia com apoio do Instituto Clima e Sociedade para fomentar e distribuir informação de qualidade sobre a emergência climática, o contexto eleitoral e o impacto na população periférica por meio de totens digitais em estabelecimentos comerciais das periferias de São Paulo

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1 Comentário

  1. Luiz Alberto disse:

    Muito boa e fundamental matéria

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