Na dança do amor próprio: A importância de se colocar no mundo com coragem e autenticidade

Na dança do amor próprio: A importância de se colocar no mundo com coragem e autenticidade

Entre ciclos de desamor e desprazer, encontrar a si mesma de maneira genuína. Para NeneSurreal os 50 anos a presenteou com uma descoberta: Quem ela era no seu íntimo. Esta é a sequência da série que apresenta perfis de mulheres negras a partir da vivência da sexualidade na maturidade.

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Por Vitori Jumapili. Edição: Aline Rodrigues. Fotos: Pedro Salvador

Existe uma forma correta de se viver? Se a resposta for sim, ela vem acompanhada da palavra feliz. NeneSurreal, moradora do Jardim Paineiras, em Diadema, região metropolitana de São Paulo, encontrou a felicidade de ser quem se é e amar verdadeiramente de forma romântica, após décadas de violências e desencontros consigo mesma. 

Ao longo da sua trajetória  a grafiteira de 57 anos colecionou relacionamentos que não a faziam bem e consequentemente sem realização sexual. Após uma viagem, ela retorna mexida, algo novo foi sentido por aquele corpo e aquele coração, que mudou totalmente o rumo do seu sentir.

Neste  Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, partilhamos mais um perfil da série “Mulheres Negras e Sexualidade”  e reforçamos a importância e urgência de se pensar nas vivências diversas. Mulheres para além dos estereótipos de pessoas de ‘mais idade’, como diz Nene.

Confira trechos da entrevista para conhecer a percepção de NeneSurreal sobre sexualidade

“Eu sou NeneSurreal. Mulher preta, periférica, mãe, avó, sapatão, sobrevivente das artes e do grafite. Eu moro nesse mesmo endereço a mais de 50 anos, em Diadema.”

“Minha vida sexual eu iniciei no final dos 12 para 13 anos. Eu tive um namorado, e aí namorei essa pessoa, engravidei dessa pessoa. Ele é o pai da minha filha. Eu fiquei viúva aos dezenove. (…) Praticamente não tive adolescência. Engravidei muito nova. E a partir do momento que engravidei, eu tinha que casar. Obrigada a casar.”

“E aí, ao longo desse tempo, eu fui me relacionando com homens. Mas eu não tive muitos relacionamentos, porque eu era essa mulher preta que não era escolhida, né? Então eu tive poucos relacionamentos. Muito pontuais, muito nesse lugar da amante, da ficante, mas não um relacionamento de fato.” 

“Me relacionei com uns dois homens héteros brancos. E já começou a me causar um incômodo. Não me sentia confortável com esses homens me tocando. Para mim hoje, na percepção que eu tenho, no amadurecimento que eu tive ao longo dos anos, é de que foram violentos.”

“Logo depois eu entrei em outro relacionamento e aí fiquei nesse uns 20 anos e também não gostava dessa pessoa. A sociedade me cobrava de estar sozinha. E aí, apareceu, era uma pessoa que naquele momento eu conseguia uma troca.” 

“E durante esse processo de convivência com essa pessoa, o sexo também não era saudável. Durante a relação, tinham várias falas assim que me atravessavam muito sabe, eu não entendia, eu achava que realmente eu era aquilo.”

“Eu tive uma fase que eu falava: ‘Gente, eu sou assexual. Eu não me relaciono’… E não me relacionava mesmo, porque eu não era essa mulher escolhida, eu não era essa mulher preta escolhida, né? O meu perfil de mulher nunca foi. Nunca fui escolhida para dançar, nunca fui escolhida para namorar.”

“E quando eu começo a vivenciar mais a arte, eu me percebo escolhida. É muito louco isso!  Eu me percebo escolhida, eu me percebo bonita. Eu começo a me olhar. E eu me percebo atraída por mulheres, eu tinha 48 anos. E com 50 anos, eu me assumo. Eu falo: ‘Não, eu sou sapatão!’. E me encontro.”

“Aos 50 anos, que realmente eu entendo o que é uma relação, o que é ser tocada. Uma mulher faz eu olhar para o meu corpo e gostar do meu corpo.”

“Eu falo: ‘Gente, eu tenho libido!’ Eu sempre soube que eu tinha, mas escondido porque achava que: ‘Como assim, né, eu vou ter desejo?’, ‘como assim eu vou ter atração?’”

“Foi muito lindo esse encontro comigo, sabe? Foi muito lindo saber que tava tudo bem. Que sim, era natural eu sentir o que eu sentia, que o meu corpo como ele era também tava tudo bem. De entender que tava tudo bem as coisas que eu queria viver e que podia ser vivido sim, independente da idade… Me fortaleceu enquanto pessoa, enquanto artista…”

“A minha vida sexual caminha junto com minha consciência de ser uma mulher negra”

“A minha namorada, minha companheira, ela faleceu tem seis meses. E tem sido enlouquecedor.  Nós fomos interrompidas de uma relação muito rica de cinco anos de muita troca, de muito respeito.”

“A nossa vida sexual sempre foi muito ativa. A gente foi amadurecendo também o que cada uma gostava ou o que não era legal, de respeitar o momento… Então as trocas sempre foram muito incríveis. De realmente se preocupar em dar prazer uma para outra, sabe?”

“Para mim, relacionamento é 50% sexo”

“É fato é 50% sexo, se tudo vai bem, é natural acontecer. E o sexo de várias maneiras, porque as pessoas enxergam o sexo, só o ato, né? E depois que a gente descobre esse universo aqui, que as outras pessoas não conhecem, a gente entende que o sexo é muito mais amplo do que o que vocês olham e assistem aí em vídeos e ouvem dizer.”

“Antes de me relacionar com mulheres, eu tive fases de eu achar que talvez eu tinha uma doença, por conta de gostar de sexo e de querer, de ter uma constância.”

“Ao longo da minha vida era isso. Por exemplo, eu acordava, ia trabalhar ou fazer essas coisas e à noite eu ia transar, e aí já tinha um sinal ‘Hoje tem hein?!’ E durante muito tempo, quando falavam isso eu até tremia, porque o toque já estava sendo tão violento para mim. Eu já não queria aquele toque, mesmo querendo transar, mesmo enlouquecida de tesão.”

“E aí, como que é isso? Sabe… Minha cabeça deu um bug. Comecei a fazer pesquisas para entender se era normal o que eu tava sentindo, porque eu não conseguia nem trocar com ninguém sobre o assunto. Como que eu vou falar de sexo com uma pessoa?”

“Hoje, eu consigo falar que para mim é natural. Se eu transar todo dia não é um problema. Desde que a pessoa que eu esteja, esteja afim, tá tranquilo para mim. E eu só fui fazer essas trocas quando eu começo me relacionar afetivamente com mulheres.”

“O sistema me ensinou isso: que não podia. Que eu não podia ser dessa maneira. Olha que bosta. Precisei passar 50 anos para eu ter tranquilidade e me sentir tranquila quanto ao meu corpo e o que eu sinto. Que não é uma doença, que eu não era uma pessoa maníaca ou enfim, né? Que eu já estava me colocando nesse lugar.”

Além das palavras

“Eu queria entender o que eu tava sentindo e aí eu fui para sala de bate-papo, de todos os tipos possíveis. Tenho histórias incríveis de salas de bate-papo”, conta Nene entre risos. “Consegui me relacionar com algumas pessoas saindo da sala de bate-papo, mas relacionamentos totalmente sexuais, não tinha nenhum tipo de envolvimento que é o que eu queria também. E até falar disso sempre foi muito difícil, porque as pessoas [falavam] ‘Como assim você só queria sexo?’. Eu falava: ‘Ah, gente! Eu só queria sexo, é um problema?’”

“E é muito louco porque eu acabo encontrando e me relacionando somente com pessoas brancas e chegou um momento que eu falei: ‘Puts” Não vai rolar! Não dá!’ E aí comecei a me relacionar com pessoas pretas, mais jovens, mas também num lugar que eu não conseguia… Parecia um produto, sabe? Essa coisa do virtual não é legal…”

“Porque justamente agora eu tô em dois aplicativos e eu já tô saindo, porque é exatamente isso: Em um eu não coloquei a minha idade, e foi engraçado, porque aí eu consegui trocar algumas ideias – não são aplicativos de recorte, que é uma pena. Eu adoraria encontrar um aplicativo somente de pessoas pretas, mas não tem ainda. Não existe. Quando eu não coloco a minha idade eu consigo acessar algumas pessoas, quando eu coloco a minha idade ali… Nossa…”

“E é muito louco, porque o aplicativo que eu tô, ele tem várias pessoas também de mais idade que a minha, inclusive, mas elas são brancas, e eu não me sinto confortável ali, sabe? Mas estou ali. E não escondo nada, não tenho um perfil limitado, minhas fotos tão lá, o que eu faço tá lá, o que eu sou tá lá. Mas mesmo assim é muito difícil eu conseguir uma troca ali”

“Eu já não me relacionava, mas convivia no mesmo espaço [com essa pessoa] e aí tiraram uma foto minha com a [minha] ex, lindíssima, e essa pessoa achou essa foto e mostrou para a família toda. Eu já não tinha um relacionamento bom com a família por vários fatores ao longo da minha caminhada. Eu rompo com minha família e, automaticamente, eu rompo com todas aquelas pessoas que fizeram parte da minha caminhada desde a infância até essa nova fase minha de ser uma mulher de mais idade e não aceitar que eu não podia determinadas coisas.”

“Então eu nunca consegui trocar uma ideia sobre sexualidade com essas pessoas que fizeram parte desse meu momento de trajetória. E só consigo falar sobre a minha sexualidade quando eu descubro realmente quem eu sou.”

“Eu lembro que a primeira vez que eu tava numa roda de amigas… que eram amigas que a gente se reunia para falar coisas, mas que a sexualidade de fato, não uma besteirinha. Mas falar da sexualidade de cada uma, não falavam o que eram, o que gostavam, sempre foi muito tabu.”

“Ainda é hoje, né? A gente falar só de sexo, sabe? …  A gente não consegue. É um tabu. Parece que vira várias coisas. E as pessoas costumam ter medo mesmo, de você se posicionar e ser rotulada de várias coisas, menos do que você é de fato.”

“E eu lembro que a primeira vez que eu falei nessa roda de mulheres de amizade de 20 anos. A primeira coisa [que elas falaram] foi: ‘Ai, agora eu nem sei como me portar perto de você’ Eu falei: ‘Mulher, fica tranquila que vocês nem são meu perfil de pessoas que eu quero me relacionar. E não é assim, e não é isso!’”

“E foi horrível… Eu praticamente rompi naquele momento com todas aquelas pessoas, uma roda de 10 pessoas. Porque não tinha mais como conversar com essas pessoas, eu não me sentia bem mais de estar com aquelas pessoas e saber que iam ficar desconfortáveis, achando que eu ia invadir o corpo delas.”

“Eu só consigo conversar sobre sexualidade hoje. Eu falo abertamente da minha libido e mesmo assim não converso com pessoas da minha faixa etária.”

“Eu tô numa roda que eu ainda não me sinto respeitada. E junto com isso vem tudo: o atravessamento, o silenciamento, o apagamento, sabe? O direito de não amar… Eu sinto isso tudo junto…”

“E aí eu faço o quê? Morro em vida, morro viva? Paro? Porque é isso que falam para nós:  ‘Pare!’, ‘Fique aí parada’, ‘Não faça mais nada’… Só que eu ainda tenho força para fazer, eu fico imaginando outras pessoas. Eu gostaria sim de trocar essa ideia, de como que essas pessoas [50+] estão fazendo para viver.”

“Não é para o outro, é para mim”

“Eu tive uma experiência agora, há pouco tempo, que eu tava num espaço fora do Brasil, e a gente foi para o samba e lá encontrei outros brasileiros e tava dançando. Dançando mesmo, e danço e rebolo e eu não estou nem aí, mas é muito louco como as pessoas me olham. É que eu não olho para as pessoas, porque se parasse para observar eu não ficaria no ambiente, porque os olhares são os mais diversos possíveis.”

 “(…) Tava lá um casal, um argentino com uma mulher preta retinta (…) e do nada eu estava dançando de costas e essa pessoa me agarrou. Ele teve a liberdade de invadir o meu corpo por conta da dança, porque ele achou que eu estava sensualizando para ele. E não foi a primeira vez que isso aconteceu comigo.”

“Agora, nessa viagem, tiveram várias coisas (…) A gente foi num reggae num lugar incrível.  Cheguei lá e comecei a dançar e os homens desse espaço todos me invadiram ao ponto de um chegar e falar: ”Oh, eu vou te mostrar a foto do meu quarto… queria que você fosse lá.”

“Por conta da idade, por conta do etarismo, de achar que eu não tenho direito de me relacionar, porque eu tenho 57 anos, mataram a minha sexualidade antes dela acabar, sabe? Eu não tenho direito de falar: ‘Eu que não quero me relacionar”. Já é uma coisa imposta e isso é enlouquecedor.“

“Eu comecei a me masturbar muito nova e era tudo um tabu. Então era tudo escondido, jamais poderia falar para ninguém… E depois que eu começo a me relacionar com as mulheres eu entendi que essa prática era necessária para o meu autoconhecimento. Por conta desse amadurecimento também e essas pessoas todas me ajudaram a entender que tá tudo bem. É importante para a nossa saúde, inclusive mental. A gente ter o nosso toque e ser o mais importante. O primeiro e o mais importante.”

Ao perguntar sobre os marcos que influenciaram a vida sexual da Nene, ela fala sobre seu momento atual.

“Eu não sei se pelo luto, pela forma que foi… ao longo desse tempo eu acho que venho oscilando. Eu já tive picos altíssimos da libido e de achar que estava doente até entender que não. Mas não uma oscilação grande assim, eu nunca tive, sabe? Tive quando hétero,  que eu não queria me relacionar, não queria o toque desse homem hétero cis, por conta das violências, e me sentir um objeto ali e não me sentir desejada de fato. Agora venho sentindo, mas não nesse lugar de incômodo, mas por conta do luto, de todas essas emoções que eu venho vivendo.”

“Agora estou num momento que eu não estou me cuidando, real, sabe? Como eu falei, estou procurando meu eixo novamente.”

“Cê procura saúde e a saúde já te violenta. Como que a gente senta para falar das coisas se você já sabe que você vai ser violentada? Então a gente não quer, mas a gente precisa fazer, então para coisas muito específicas, que nem o exame da mama, colher um papanicolau. Enfim, eu ainda estou fazendo nesses lugares [Postos, hospitais de saúde convencionais].

“Eu fui criada por uma avó que era das ervas, então desde muito novinha, eu tomo o mentruz, erva cidreira.” 

“Eu estava ali numa relação monogâmica com uma pessoa não monogâmica. Então a gente fazia muito essa troca de como [somar] tanto no cuidado dela como no meu cuidado. Então principalmente na pandemia, a gente começou a plantar várias ervas, a gente fazia muito banho, qualquer coisa a gente já recorria ao alho, fazia um banho de assento também.”

“Eu demorei para me olhar no espelho, sabe, me olhar mesmo no espelho e falar: ‘Poxa, eu sou bonita!’. Hoje eu consigo me olhar, me acho bonita, gosto de me arrumar, eu me gosto assim como eu sou hoje, sabe. E aí uma das poucas coisas que eu fico, poxa, poderia deixar, né, mas ainda não consigo é deixar de tingir o cabelo.”

“Eu me preocupo muito com a minha imagem, mas para mim. Gosto de uma coisa mais estilosa, de uma roupa diferente, então eu sou bem vaidosa.”

“Durante esse processo todo de luto, a música, a arte, saber quem eu sou e vestir uma roupa e encontrar pessoas, me sentir bem, me sentir bonita é o que me motiva para mim. Eu acho se não fosse isso seria impossível.”

“Eu não preciso ser da forma que a sociedade moldou. Que é a mulher preta que é irmã, depois a mulher preta que é namorada,  depois a mulher preta que é esposa, depois a mulher preta que é vó e depois a mulher preta que morreu, porque ela não conseguiu nem viver. Ela foi tudo isso e como que ela vai dar conta de viver também?”

“Então eu falo: ‘Eu não sou essa vovozinha que vocês esperam. Não vou ser até morrer! Não vou me enquadrar!’ Então sim, eu quero namorar, eu quero viver, eu quero dançar. Se eu tiver vontade eu quero fazer sim!”

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Por Vitori Jumapili. Edição: Aline Rodrigues. Fotos: Pedro Salvador

Existe uma forma correta de se viver? Se a resposta for sim, ela vem acompanhada da palavra feliz. NeneSurreal, moradora do Jardim Paineiras, em Diadema, região metropolitana de São Paulo, encontrou a felicidade de ser quem se é e amar verdadeiramente de forma romântica, após décadas de violências e desencontros consigo mesma. 

Ao longo da sua trajetória  a grafiteira de 57 anos colecionou relacionamentos que não a faziam bem e consequentemente sem realização sexual. Após uma viagem, ela retorna mexida, algo novo foi sentido por aquele corpo e aquele coração, que mudou totalmente o rumo do seu sentir.

Neste  Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, partilhamos mais um perfil da série “Mulheres Negras e Sexualidade”  e reforçamos a importância e urgência de se pensar nas vivências diversas. Mulheres para além dos estereótipos de pessoas de ‘mais idade’, como diz Nene.

Confira trechos da entrevista para conhecer a percepção de NeneSurreal sobre sexualidade

“Eu sou NeneSurreal. Mulher preta, periférica, mãe, avó, sapatão, sobrevivente das artes e do grafite. Eu moro nesse mesmo endereço a mais de 50 anos, em Diadema.”

“Minha vida sexual eu iniciei no final dos 12 para 13 anos. Eu tive um namorado, e aí namorei essa pessoa, engravidei dessa pessoa. Ele é o pai da minha filha. Eu fiquei viúva aos dezenove. (…) Praticamente não tive adolescência. Engravidei muito nova. E a partir do momento que engravidei, eu tinha que casar. Obrigada a casar.”

“E aí, ao longo desse tempo, eu fui me relacionando com homens. Mas eu não tive muitos relacionamentos, porque eu era essa mulher preta que não era escolhida, né? Então eu tive poucos relacionamentos. Muito pontuais, muito nesse lugar da amante, da ficante, mas não um relacionamento de fato.” 

“Me relacionei com uns dois homens héteros brancos. E já começou a me causar um incômodo. Não me sentia confortável com esses homens me tocando. Para mim hoje, na percepção que eu tenho, no amadurecimento que eu tive ao longo dos anos, é de que foram violentos.”

“Logo depois eu entrei em outro relacionamento e aí fiquei nesse uns 20 anos e também não gostava dessa pessoa. A sociedade me cobrava de estar sozinha. E aí, apareceu, era uma pessoa que naquele momento eu conseguia uma troca.” 

“E durante esse processo de convivência com essa pessoa, o sexo também não era saudável. Durante a relação, tinham várias falas assim que me atravessavam muito sabe, eu não entendia, eu achava que realmente eu era aquilo.”

“Eu tive uma fase que eu falava: ‘Gente, eu sou assexual. Eu não me relaciono’… E não me relacionava mesmo, porque eu não era essa mulher escolhida, eu não era essa mulher preta escolhida, né? O meu perfil de mulher nunca foi. Nunca fui escolhida para dançar, nunca fui escolhida para namorar.”

“E quando eu começo a vivenciar mais a arte, eu me percebo escolhida. É muito louco isso!  Eu me percebo escolhida, eu me percebo bonita. Eu começo a me olhar. E eu me percebo atraída por mulheres, eu tinha 48 anos. E com 50 anos, eu me assumo. Eu falo: ‘Não, eu sou sapatão!’. E me encontro.”

“Aos 50 anos, que realmente eu entendo o que é uma relação, o que é ser tocada. Uma mulher faz eu olhar para o meu corpo e gostar do meu corpo.”

“Eu falo: ‘Gente, eu tenho libido!’ Eu sempre soube que eu tinha, mas escondido porque achava que: ‘Como assim, né, eu vou ter desejo?’, ‘como assim eu vou ter atração?’”

“Foi muito lindo esse encontro comigo, sabe? Foi muito lindo saber que tava tudo bem. Que sim, era natural eu sentir o que eu sentia, que o meu corpo como ele era também tava tudo bem. De entender que tava tudo bem as coisas que eu queria viver e que podia ser vivido sim, independente da idade… Me fortaleceu enquanto pessoa, enquanto artista…”

“A minha vida sexual caminha junto com minha consciência de ser uma mulher negra”

“A minha namorada, minha companheira, ela faleceu tem seis meses. E tem sido enlouquecedor.  Nós fomos interrompidas de uma relação muito rica de cinco anos de muita troca, de muito respeito.”

“A nossa vida sexual sempre foi muito ativa. A gente foi amadurecendo também o que cada uma gostava ou o que não era legal, de respeitar o momento… Então as trocas sempre foram muito incríveis. De realmente se preocupar em dar prazer uma para outra, sabe?”

“Para mim, relacionamento é 50% sexo”

“É fato é 50% sexo, se tudo vai bem, é natural acontecer. E o sexo de várias maneiras, porque as pessoas enxergam o sexo, só o ato, né? E depois que a gente descobre esse universo aqui, que as outras pessoas não conhecem, a gente entende que o sexo é muito mais amplo do que o que vocês olham e assistem aí em vídeos e ouvem dizer.”

“Antes de me relacionar com mulheres, eu tive fases de eu achar que talvez eu tinha uma doença, por conta de gostar de sexo e de querer, de ter uma constância.”

“Ao longo da minha vida era isso. Por exemplo, eu acordava, ia trabalhar ou fazer essas coisas e à noite eu ia transar, e aí já tinha um sinal ‘Hoje tem hein?!’ E durante muito tempo, quando falavam isso eu até tremia, porque o toque já estava sendo tão violento para mim. Eu já não queria aquele toque, mesmo querendo transar, mesmo enlouquecida de tesão.”

“E aí, como que é isso? Sabe… Minha cabeça deu um bug. Comecei a fazer pesquisas para entender se era normal o que eu tava sentindo, porque eu não conseguia nem trocar com ninguém sobre o assunto. Como que eu vou falar de sexo com uma pessoa?”

“Hoje, eu consigo falar que para mim é natural. Se eu transar todo dia não é um problema. Desde que a pessoa que eu esteja, esteja afim, tá tranquilo para mim. E eu só fui fazer essas trocas quando eu começo me relacionar afetivamente com mulheres.”

“O sistema me ensinou isso: que não podia. Que eu não podia ser dessa maneira. Olha que bosta. Precisei passar 50 anos para eu ter tranquilidade e me sentir tranquila quanto ao meu corpo e o que eu sinto. Que não é uma doença, que eu não era uma pessoa maníaca ou enfim, né? Que eu já estava me colocando nesse lugar.”

Além das palavras

“Eu queria entender o que eu tava sentindo e aí eu fui para sala de bate-papo, de todos os tipos possíveis. Tenho histórias incríveis de salas de bate-papo”, conta Nene entre risos. “Consegui me relacionar com algumas pessoas saindo da sala de bate-papo, mas relacionamentos totalmente sexuais, não tinha nenhum tipo de envolvimento que é o que eu queria também. E até falar disso sempre foi muito difícil, porque as pessoas [falavam] ‘Como assim você só queria sexo?’. Eu falava: ‘Ah, gente! Eu só queria sexo, é um problema?’”

“E é muito louco porque eu acabo encontrando e me relacionando somente com pessoas brancas e chegou um momento que eu falei: ‘Puts” Não vai rolar! Não dá!’ E aí comecei a me relacionar com pessoas pretas, mais jovens, mas também num lugar que eu não conseguia… Parecia um produto, sabe? Essa coisa do virtual não é legal…”

“Porque justamente agora eu tô em dois aplicativos e eu já tô saindo, porque é exatamente isso: Em um eu não coloquei a minha idade, e foi engraçado, porque aí eu consegui trocar algumas ideias – não são aplicativos de recorte, que é uma pena. Eu adoraria encontrar um aplicativo somente de pessoas pretas, mas não tem ainda. Não existe. Quando eu não coloco a minha idade eu consigo acessar algumas pessoas, quando eu coloco a minha idade ali… Nossa…”

“E é muito louco, porque o aplicativo que eu tô, ele tem várias pessoas também de mais idade que a minha, inclusive, mas elas são brancas, e eu não me sinto confortável ali, sabe? Mas estou ali. E não escondo nada, não tenho um perfil limitado, minhas fotos tão lá, o que eu faço tá lá, o que eu sou tá lá. Mas mesmo assim é muito difícil eu conseguir uma troca ali”

“Eu já não me relacionava, mas convivia no mesmo espaço [com essa pessoa] e aí tiraram uma foto minha com a [minha] ex, lindíssima, e essa pessoa achou essa foto e mostrou para a família toda. Eu já não tinha um relacionamento bom com a família por vários fatores ao longo da minha caminhada. Eu rompo com minha família e, automaticamente, eu rompo com todas aquelas pessoas que fizeram parte da minha caminhada desde a infância até essa nova fase minha de ser uma mulher de mais idade e não aceitar que eu não podia determinadas coisas.”

“Então eu nunca consegui trocar uma ideia sobre sexualidade com essas pessoas que fizeram parte desse meu momento de trajetória. E só consigo falar sobre a minha sexualidade quando eu descubro realmente quem eu sou.”

“Eu lembro que a primeira vez que eu tava numa roda de amigas… que eram amigas que a gente se reunia para falar coisas, mas que a sexualidade de fato, não uma besteirinha. Mas falar da sexualidade de cada uma, não falavam o que eram, o que gostavam, sempre foi muito tabu.”

“Ainda é hoje, né? A gente falar só de sexo, sabe? …  A gente não consegue. É um tabu. Parece que vira várias coisas. E as pessoas costumam ter medo mesmo, de você se posicionar e ser rotulada de várias coisas, menos do que você é de fato.”

“E eu lembro que a primeira vez que eu falei nessa roda de mulheres de amizade de 20 anos. A primeira coisa [que elas falaram] foi: ‘Ai, agora eu nem sei como me portar perto de você’ Eu falei: ‘Mulher, fica tranquila que vocês nem são meu perfil de pessoas que eu quero me relacionar. E não é assim, e não é isso!’”

“E foi horrível… Eu praticamente rompi naquele momento com todas aquelas pessoas, uma roda de 10 pessoas. Porque não tinha mais como conversar com essas pessoas, eu não me sentia bem mais de estar com aquelas pessoas e saber que iam ficar desconfortáveis, achando que eu ia invadir o corpo delas.”

“Eu só consigo conversar sobre sexualidade hoje. Eu falo abertamente da minha libido e mesmo assim não converso com pessoas da minha faixa etária.”

“Eu tô numa roda que eu ainda não me sinto respeitada. E junto com isso vem tudo: o atravessamento, o silenciamento, o apagamento, sabe? O direito de não amar… Eu sinto isso tudo junto…”

“E aí eu faço o quê? Morro em vida, morro viva? Paro? Porque é isso que falam para nós:  ‘Pare!’, ‘Fique aí parada’, ‘Não faça mais nada’… Só que eu ainda tenho força para fazer, eu fico imaginando outras pessoas. Eu gostaria sim de trocar essa ideia, de como que essas pessoas [50+] estão fazendo para viver.”

“Não é para o outro, é para mim”

“Eu tive uma experiência agora, há pouco tempo, que eu tava num espaço fora do Brasil, e a gente foi para o samba e lá encontrei outros brasileiros e tava dançando. Dançando mesmo, e danço e rebolo e eu não estou nem aí, mas é muito louco como as pessoas me olham. É que eu não olho para as pessoas, porque se parasse para observar eu não ficaria no ambiente, porque os olhares são os mais diversos possíveis.”

 “(…) Tava lá um casal, um argentino com uma mulher preta retinta (…) e do nada eu estava dançando de costas e essa pessoa me agarrou. Ele teve a liberdade de invadir o meu corpo por conta da dança, porque ele achou que eu estava sensualizando para ele. E não foi a primeira vez que isso aconteceu comigo.”

“Agora, nessa viagem, tiveram várias coisas (…) A gente foi num reggae num lugar incrível.  Cheguei lá e comecei a dançar e os homens desse espaço todos me invadiram ao ponto de um chegar e falar: ”Oh, eu vou te mostrar a foto do meu quarto… queria que você fosse lá.”

“Por conta da idade, por conta do etarismo, de achar que eu não tenho direito de me relacionar, porque eu tenho 57 anos, mataram a minha sexualidade antes dela acabar, sabe? Eu não tenho direito de falar: ‘Eu que não quero me relacionar”. Já é uma coisa imposta e isso é enlouquecedor.“

“Eu comecei a me masturbar muito nova e era tudo um tabu. Então era tudo escondido, jamais poderia falar para ninguém… E depois que eu começo a me relacionar com as mulheres eu entendi que essa prática era necessária para o meu autoconhecimento. Por conta desse amadurecimento também e essas pessoas todas me ajudaram a entender que tá tudo bem. É importante para a nossa saúde, inclusive mental. A gente ter o nosso toque e ser o mais importante. O primeiro e o mais importante.”

Ao perguntar sobre os marcos que influenciaram a vida sexual da Nene, ela fala sobre seu momento atual.

“Eu não sei se pelo luto, pela forma que foi… ao longo desse tempo eu acho que venho oscilando. Eu já tive picos altíssimos da libido e de achar que estava doente até entender que não. Mas não uma oscilação grande assim, eu nunca tive, sabe? Tive quando hétero,  que eu não queria me relacionar, não queria o toque desse homem hétero cis, por conta das violências, e me sentir um objeto ali e não me sentir desejada de fato. Agora venho sentindo, mas não nesse lugar de incômodo, mas por conta do luto, de todas essas emoções que eu venho vivendo.”

“Agora estou num momento que eu não estou me cuidando, real, sabe? Como eu falei, estou procurando meu eixo novamente.”

“Cê procura saúde e a saúde já te violenta. Como que a gente senta para falar das coisas se você já sabe que você vai ser violentada? Então a gente não quer, mas a gente precisa fazer, então para coisas muito específicas, que nem o exame da mama, colher um papanicolau. Enfim, eu ainda estou fazendo nesses lugares [Postos, hospitais de saúde convencionais].

“Eu fui criada por uma avó que era das ervas, então desde muito novinha, eu tomo o mentruz, erva cidreira.” 

“Eu estava ali numa relação monogâmica com uma pessoa não monogâmica. Então a gente fazia muito essa troca de como [somar] tanto no cuidado dela como no meu cuidado. Então principalmente na pandemia, a gente começou a plantar várias ervas, a gente fazia muito banho, qualquer coisa a gente já recorria ao alho, fazia um banho de assento também.”

“Eu demorei para me olhar no espelho, sabe, me olhar mesmo no espelho e falar: ‘Poxa, eu sou bonita!’. Hoje eu consigo me olhar, me acho bonita, gosto de me arrumar, eu me gosto assim como eu sou hoje, sabe. E aí uma das poucas coisas que eu fico, poxa, poderia deixar, né, mas ainda não consigo é deixar de tingir o cabelo.”

“Eu me preocupo muito com a minha imagem, mas para mim. Gosto de uma coisa mais estilosa, de uma roupa diferente, então eu sou bem vaidosa.”

“Durante esse processo todo de luto, a música, a arte, saber quem eu sou e vestir uma roupa e encontrar pessoas, me sentir bem, me sentir bonita é o que me motiva para mim. Eu acho se não fosse isso seria impossível.”

“Eu não preciso ser da forma que a sociedade moldou. Que é a mulher preta que é irmã, depois a mulher preta que é namorada,  depois a mulher preta que é esposa, depois a mulher preta que é vó e depois a mulher preta que morreu, porque ela não conseguiu nem viver. Ela foi tudo isso e como que ela vai dar conta de viver também?”

“Então eu falo: ‘Eu não sou essa vovozinha que vocês esperam. Não vou ser até morrer! Não vou me enquadrar!’ Então sim, eu quero namorar, eu quero viver, eu quero dançar. Se eu tiver vontade eu quero fazer sim!”

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