Por André Santos. Edição: Thiago Borges. Artes: Rafael Cristiano
A vida de Sandra de Jesus era o cotidiano comum de uma mulher periférica. Ela trabalhava dentro e fora de casa, onde era cuidadora de pessoas idosas.
Porém, em 10 de fevereiro de 2023, esse cotidiano foi atravessado por outro acontecimento muito comum a tantas mulheres periféricas: seu filho Luiz Fernando, de apenas 20 anos, foi assassinado por agentes da Rota, a unidade de elite da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
“Eu tinha uma vida normal. Saia, trabalhava, voltava pra casa depois de cuidar dos meus idosos. Até o dia que o Estado veio e entrou na minha vida de uma forma tão cruel”, diz ela, que hoje tem 42 anos e mora em uma periferia da zona Sul paulistana.
Como várias outras mulheres periféricas, especialmente mães, a vida de Sandra mudou completamente.
“Com a execução do meu filho, eu não consigo mais trabalhar na área em que eu estava porque para cuidar de uma pessoa nós precisamos estar bem, e hoje eu tenho problemas de saúde e psicológicos”, completa.
Sandra precisou passar por um longo processo de reestruturação para poder ter forças e seguir em frente. “Por eu ter vindo de uma depressão muito profunda e uma tentativa de suicídio eu perdi tudo, precisei recomeçar do zero”, ela conta.
O episódio levou à depressão e a uma nova rotina.
Com ajuda de muitas pessoas, Sandra conseguiu alugar uma casa e entrou como pesquisadora social do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense – CAAF/Unifesp, em um projeto chamado “Enfrentação”, que cuida de familiares de vítimas de violência estatal.
“Hoje eu atuo com mães da Grande São Paulo e junto de familiares de vítimas de violência do Estado e de uma equipe, com psicóloga, assistente social e advogada”, explica.
“Eu acho que esse virou o meu legado, honrar a memória não só do meu filho, mas também de outros jovens que estão sendo executados pelo Estado”, diz.
Rede de apoio e reconstrução parcial
Apesar da devastação, Sandra encontrou apoio crucial em redes de solidariedade.
Depois da morte de Luiz Fernando, conheceu pessoas e movimentos como o Mães de Maio, a Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio e o projeto Flor de Cactos.
Foi após sua tentativa de suicídio que essa rede a acolheu de forma mais intensa, levando-a ao hospital, acompanhando a internação, e organizando uma “vaquinha” para que ela pudesse alugar uma nova casa, permitindo um restabelecimento físico e mental.
“Essa rede de amigas e amigos eu falo que foi enviada pelo meu filho, meu anjo”, diz.
Por outro lado, ela é categórica ao declarar que o Estado não oferece nenhum suporte efetivo às mães enlutadas, exceto pelo acesso à Rede de Apoio da Defensoria Pública, que ela só conheceu por meio dos grupos que a acolheram, após todos os processos citados anteriormente.
Sandra busca justiça, não vingança, e critica a impunidade policial e a falta de suporte estatal para as famílias das vítimas. A ativista relembra que Luiz Fernando foi executado no dia de aniversário de sua avó, que também sofreu severas consequências de saúde devido ao crime.
“Uma mãe também morre quando perde um filho. E o Estado continua sendo falho porque nem atendimento psicológico adequado tem pra nós que estamos em luto. Se chegamos em algum local com dor de luto, saudade ou qualquer sofrimento, nós somos dopadas”, aponta.
Fábrica de mães enlutadas
A história de Sandra, infelizmente, é bastante comum dentro de diversas periferias de norte a sul do Brasil e do mundo.
A violência policial e o genocídio da juventude negra e periférica são um marco social e uma herança sangrenta.
A própria Rota, que promoveu o assassinato de Luiz Fernando, possui um longo histórico de execuções amplamente denunciadas ao longo dos 55 anos de existência da corporação. No livro ‘Rota 66: a história da polícia que mata’, do jornalista Caco Barcellos, ele aponta quase 4.200 mortes provocadas por policiais paulistas entre 1970 e 1992, ano de sua publicação.
Criado como ferramenta de controle social e opressão em 1970, no auge da ditadura militar no Brasil, o jeito de agir do batalhão segue o mesmo após a redemocratização do País.
O atual secretário de segurança pública de São Paulo é Guilherme Derrite (PP), expulso da Rota por “excesso de mortes”, segundo o próprio.
Desde que Derrite e o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) assumiram seus atuais postos, as mortes por PMs aumentaram 98% em SP, entre 2022 e 2024. De acordo com dados do Ministério Público, os números saltaram de 355 para 702 mortes ligadas à letalidade policial no período.
Em contrapartida a isso, dos 1224 inquéritos abertos entre 2015 e 2020 contra crimes promovidos por policiais militares, apenas 122 foram denunciados pelo Ministério Público à justiça. Somente 20 sofreram condenação – menos de 2% dos inquéritos. É o que aponta um levantamento realizado pela advogada Débora Nachmanowicz, mestre em “Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia” pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Uma chance de justiça
Sandra conseguiu levar o caso de Luiz Fernando adiante e um processo penal está em curso. Os três policiais envolvidos na execução tornaram-se réus por morte, fraude processual e omissão de socorro.
No último dia 12 de maio, apenas um dia após o dia das mães, houve a primeira audiência, fase inicial do processo, com o intuito de decidir se os agentes vão a júri popular.
A principal razão para o caso ter chegado a este ponto foram as imagens das câmeras corporais dos policiais envolvidos. Apesar da dor em assistir às cenas de barbárie, Sandra conseguiu acesso a essas imagens por meio da Defensoria Pública e alega que os policiais viram as gravações antes de elas serem divulgadas, o que é inconstitucional.
“As imagens das câmeras corporais no caso do meu filho foram muito nítidas de que não houve uma ação policial, e sim uma execução policial”, diz.
Não haverá um desfecho final ou uma “vitória” este ano. O sistema judicial brasileiro permite que a defesa dos réus conteste o resultado e recorra em várias instâncias. Apesar disso, ela aponta que não quer vingança, apenas justiça.
“Mesmo que a justiça reconheça que o policial que apertou o gatilho merece ser condenado, eu não vou ter uma vitória. A vitória que eu gostaria de ter era ter o Luiz Fernando comigo, voltar a ser chamada de mãe. E ser chamada de mãe eu nunca mais vou ser”, desabafa.
“Polícia treinada para matar”
Manifestantes na Estrada de Itaquera, rumo ao Hospital Campo Limpo em destaque jovem com cartaz ‘Estado Genocída’
Apesar de o julgamento estar em trânsito, os policiais seguem na ativa. Um dos agentes envolvidos já teria participado de outra execução recentemente.
“Além de me fazer chorar, ele já conseguiu fazer outra mãe chorar que está passando pelo mesmo que eu. Mas nem por isso eu quero a morte dele. Eu quero sim que ele seja julgado, processado e condenado, que ele perca a farda (…). O Estado é responsável por isso”.
Ela critica a percepção de que a polícia é mal treinada, afirmando que em São Paulo, a polícia é “muito bem treinada para matar”. Esta seria uma cultura enraizada na corporação, que se utiliza do pretexto do combate às drogas e à criminalidade para promover um genocídio, ignorando o direito à vida.
“Eu vim entender que eu tinha direito à vida depois dos meus 40 anos depois da perda do meu filho. Não só a vida, mas também à moradia, à saúde e outras coisas que não conseguimos acessar”, pontua.
Hoje, mesmo tendo que lidar com o luto, Sandra fez a escolha de lutar pela justiça e defesa da juventude negra e periférica. Seu legado e sua missão agora são honrar a memória de seu filho.
A ativista aponta que faz o trabalho que faz para que pessoas como eu, que vos escreve esse texto, e tantos outros jovens que habitam e transitam pelas periferias não sejamos mortos pelas mãos do Estado, e para que nenhuma mãe precise passar pelas mesmas dores que passou.
“Eu tenho um buraco no peito que sangra todos os dias, e todos os dias eu tenho que entender o que eu vou fazer com essa dor. Então, a partir da minha dor, eu estou me transformando nisso, numa militante de direitos humanos para dizer que basta. Basta de matar vocês, basta de matar os nossos filhos”, finaliza.