Da janela de seu apartamento, Maria Lídia da Silva, de 45 anos, observa a imponente Ponte Estaiada.
Indígena da etnia pankararu, ela mora em um dos prédios erguidos desde 2010 pela prefeitura de São Paulo no lugar dos barracos de madeira da favela Real Parque.
Lídia está há 15 anos longe da terra indígena demarcada para seu povo, à margem do rio São Francisco, em Pernambuco, onde vivem mais de 7.000 pankararus. Com três dos quatro filhos morando em São Paulo, Lídia só volta à aldeia para passear.
Desde os anos 1950, conflitos de terra com posseiros e a seca que assola o sertão estimularam os pankararus a trocarem as aldeias pelo concreto de São Paulo.
Os primeiros “primos” (como eles chamam uns aos outros) migraram para cá para trabalhar na obra do Estádio do Morumbi e se fixaram em um terreno próximo, que deu origem à favela Real Parque.
“Eles voltavam para a aldeia no tempo da safra, na seca, migravam novamente”, conta Dora Pankararu, presidente da Associação Indígena SOS Pankararu de Real Parque. “Mas os recursos ficaram mais difíceis e as famílias foram permanecendo aqui”.
Hoje, estima-se que ao menos 180 famílias da etnia moram hoje na comunidade. Em toda grande São Paulo, seriam 500 famílias vivendo em periferias, especialmente na zona Leste.
Muitos trabalham como motoristas de ônibus, porteiros de edifícios e faxineiros em grandes empresas, enquanto outros vivem de biscates.
Depois de trabalhar por sete anos como auxiliar de limpeza em um banco, Lídia foi escolhida em 2004 para ser uma das agentes de saúde indígena do Programa Saúde da Família – uma conquista da comunidade Pankararu de Real Parque.
Ela é responsável por visitar famílias pankararus, apesar de muitos deles continuarem tomando chás de ervas medicinais antes de comparecer ao posto de saúde.
O hábito é uma das poucas trincheiras de resistência da etnia na cidade de São Paulo. Com a extinção do idioma original e a perda de vários costumes, os pankararus tentam preservar também costumes religiosos.
“Os não-indígenas não gostam dos nossos rituais por causa do barulho e da fumaça do cachimbo que fumamos”, diz Lídia, discriminada pelos poucos traços indígenas que mantém após a miscigenação de seu povo com negros e brancos.
Uma vez por mês tem pajelança na favela, quando homens, mulheres e crianças se reúnem para rezar, dançar e cantar.
“Com a urbanização de Real Parque, estamos perdendo nossa cultura”, diz ela.
Antigamente, as cerimônias religiosas eram realizadas na rua onde morava a maior parte dos pankararus e se estendiam do anoitecer do sábado ao amanhecer de domingo.
Mas, com a construção dos prédios, os rituais são restritos aos apartamentos e terminam antes da meia-noite.
Para preservar esse hábito, a prefeitura prometeu uma sede para a associação SOS Pankararu e um espaço para realizar a Toré, em que os participantes cobrem o corpo com vestes de palha.
“Morar na cidade exige aprender uma nova maneira de nos apresentarmos para a diferente sociedade em que estamos nos inserindo”, diz Dora, presidente da associação. “Mas precisamos nos policiar para não perdermos nossa identidade”.
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Thiago Borges