Por Marcelo Lino Jr. Edição: Thiago Borges. Arte de capa: Rafael Cristiano
Mohammed Ayoub vê as notícias do massacre promovido pelo Estado de Israel contra a população da Palestina, no Oriente Médio, mas precisa seguir. Ele levanta com sintomas de gripe para mais um dia de trabalho no Brás, em São Paulo, onde é vendedor em uma loja de roupas.
A 10.600 quilômetros de distância de casa, ele é pessimista a respeito da situação de seu próprio povo.
“Para ser sincero, eu estou no escuro, não tenho esperança, não estou vendo nada”, diz Mohammed, de 31 anos, que está no Brasil desde 2017.
Nem por isso Mohammed esquece as origens. É uma questão identitária e de resistência.
Assim como milhares de compatriotas, ele é um refugiado palestino que nunca pisou em Gaza ou na Cisjordânia – regiões remanescentes do território original da Palestina que resistem à ocupação do Estado de Israel.
“Meu avô contava que até a década de 1930 sua vida era fácil, tranquila. Ele morava lá com sua família, numa pequena aldeia. Aí, depois da Guerra Mundial, chegaram uns homens armados e começaram a matar pessoas”, resume.
Isso forçou o deslocamento de sua família e Mohammed nasceu na Síria, onde viveu até os 17 anos – e continua sendo palestino.
“Se você nasceu filho de pai palestino, você é palestino. É difícil explicar isso para as pessoas fora, mas tem a ver com como é passada a ancestralidade”, explica Soraya Misleh, 55 anos, jornalista e ativista palestino-brasileira.
Com a guerra civil na Síria, Mohammed se abrigou no Líbano por seis anos, quando soube do programa de refúgio do Brasil em 2017. Naquele ano, foram 33.865 solicitações de refúgio contabilizadas em todo o País, segundo o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), do Ministério da Justiça. Mohammed foi um dos 1.128 pedidos da Síria.
Dos 454 mil pedidos de refúgio solicitados ao governo brasileiro entre 2015 e 2024, 1,9% são de pessoas oriundas da Síria. Dos 13.444 processos do ano passado, 111 são sírios. Confira aqui.
Entre essas solicitações, há muitas de pessoas palestinas com documentos de outros países – o Conare não especifica em seu relatório.
Aqui em São Paulo, Mohammed encontrou apoio de primos para conseguir trabalho e se estabelecer. Sua primeira moradia foi um apartamento em cima de uma lavanderia no Brás e, hoje, em um imóvel ainda menor na Mooca (zona Leste).
“Não tenho problema aqui, tenho amigos brasileiros porque é um lugar com muito carinho”, conta Mohammed, que sobrevive longe do massacre, apesar da angústia
Identidade
O Dia Mundial das Pessoas Refugiadas foi celebrado em 20 de junho.
E das 14 milhões de pessoas palestinas, metade está em refúgio, sendo que 6 milhões estão em campos de refugiados em países árabes. Outras milhares estão espalhadas pelo mundo. Todas elas impedidas de retornar às suas terras legítimas.
Isso implica na falta de cidadania, e muitas pessoas precisam tirar documentos na Síria, no Líbano, na Jordânia ou no Egito, por exemplo.
Por conta dessa nacionalidade “perdida”, os registros de pessoas palestinas no Brasil não são precisos.
Fundada em 1979, a Federação Árabe Palestina do Brasil (FEPAL) estima que a diáspora palestina tenha em torno de 200 mil pessoas refugiadas, imigrantes e descendentes vivendo no País.
É o resultado de uma violência vivida nos últimos 77 anos, desde 1948, quando houve a criação do Estado de Israel, a invasão militar de terras palestinas e a chamada “Nakba” – palavra árabe que significa “catástrofe”.
- Soraya Misleh na Palestina (arquivo pessoal)
- Soraya Misleh com o pai Abder, no Brasil (arquivo pessoal)
- Soraya Misleh na Palestina (arquivo pessoal)
Assim como o avô de Mohammed, outra vítima da Nakba foi Abder Raouf.
“Meu pai tinha 13 anos de idade. Ele foi um dos 800 mil palestinos expulsos nesse processo. E a aldeia dele foi uma das cerca de 530 destruídas”, diz Soraya Misleh, filha de Abder nascida no refúgio no Brasil.
O pai de Soraya sonhava em voltar para Qaqun, aldeia no norte da Palestina ocupada por Israel, onde tinha uma vida simples. Mas o sonho foi negado pelo estado colonial.
“Ele faleceu em 2023 aos 88 anos, com aquela tristeza no do estrangeiro, do refugiado, sem poder retornar para sua terra, como esses 6 milhões que ainda estão em campo de refugiados”, aponta Soraya.
A colonização e a “solução final”
A colonização europeia de cinco séculos atrás no Brasil e nas Américas, que se sucedeu na África e na Ásia, tinham o objetivo de extrair riquezas naturais.
No final do século 19, os países europeus invadiram novos territórios: a França ocupou Síria, Líbano e Egito; a Itália ocupou Líbia; a Inglaterra ocupou Iraque, Jordânia e Palestina.
E no século 20, o projeto de colonização europeia se abateu sobre a Palestina, com a justificativa era encontrar uma solução para o povo judeu.
Em 1917, o Reino Unido declarou apoio à criação de um “lar nacional para o povo judeu” na Palestina – sem nenhuma consulta ao país.
A ideia é baseada no sionismo, movimento político que defende um estado judeu sem espaço para outras etnias. Na época, sionistas eram mau vistos pelo próprio povo judeu, até mesmo por conta da perseguição que sofriam na Europa e majoritariamente contra a criação desse estado.
Mas depois da Segunda Guerra, com os horrores promovidos por Adolf Hitler, a solução voltou à tona como uma “desculpa” à comunidade judaica.
“Antes de 1948, o imperialismo buscava soluções para os judeus na Europa”, conta Victorios Sham, jornalista da emissora de TV Al Jazeera e mais um refugiado da guerra na Síria que hoje luta pela causa palestina no Brasil.
No livro “Estado Judeu”, de Theodor Herzl, inventor do sionismo político, a defesa de uma colonização atrelada à pretensões racistas e coloniais citava até a Argentina como possível território, como “um exemplo de país com experiência bem sucedida de colonização”.
“E foi em 1948 que a Inglaterra entregou a responsabilidade do território palestino à recém criada ONU”, continua Victorios.
Em 1947, o brasileiro Oswaldo Aranha presidiu a primeira Assembleia Geral das Nações Unidas. E na reunião, ele recomendou a partilha da Palestina em dois estados – um judeu e um árabe, juntamente com uma zona internacional que abrangesse Jerusalém e Belém.
Essa divisão, como já sabemos, não aconteceu. O que houve foi o domínio armado por Israel da maior parte do território palestino.
Desde 1948 até 2023, aproximadamente 120 mil pessoas palestinas morreram em conflitos com Israel, segundo a própria ONU. Mas os números não incluem as mortes por fome, condições precárias em campos de refugiados, violência policial e doenças.
No mesmo período, 10 mil israelenses morreram nos conflitos, sendo 7 mil civis vítimas em atentados terroristas planejados pelo Hamas.
A dimensão do genocídio tem aumentado desde 7 de outubro de 2023, quando o Hamas promoveu um ataque que matou 1.200 mil civis e sequestrou 240 de Israel. Ao mesmo tempo, o regime sionista deixou na Cisjordânia e especialmente em Gaza um rastro de quase 56 mil pessoas mortas – com nome e sobrenome e corpo achado, segundo a ONU – e mais de 133 mil feridas.
Esses números são subnotificados, já que não contam as vítimas da fome e de doenças.
“Se sentiram no direito de buscar o que a gente chama de ‘solução final’ na contínua Nakba, a catástrofe palestina. E é isso que nós estamos vendo há 19 meses”, analisa Soraya.
Armas que matam lá e cá
Em março de 2023, o governador bolsonarista de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), se reuniu com o embaixador israelense no Brasil, Daniel Zonshine, para discutir parcerias em áreas da segurança pública, incluindo treinamentos de tropa de elite à Polícia Militar.
A compra de armas, como os mil fuzis modelo Tavor TAR-21, os drones de monitoramento e veículos blindados, mostram o alinhamento ideológico entre Tarcísio e israelenses.
Há anos, a comunicadora comunitária Gizele Martins denuncia a importação de armas israelenses para reprimir e matar pessoas no Complexo da Maré e outras favelas cariocas.
O processo de desumanização e demonização, seja de árabes ou pessoas periféricas, segue a mesma lógica.
Benjamin Netanyahu, primeiro ministro de Israel, chama sua empreitada de “luta da civilização contra a barbárie”.
Uma das mais recentes estratégias para disseminar a visão sionista foi a viagem de uma comitiva com 40 autoridades brasileiras, entre governadores, prefeitos, vice-prefeitos e secretários municipais, para conhecer tecnologias de repressão israelenses.
O grupo chegou ao País em 8 de junho e, no dia 12, o governo de Israel atacou o Irã, que revidou os ataques. A comitiva precisou se abrigar em esconderijos no subsolo. Algumas dessas autoridades afirmaram que, na véspera de deixarem o abrigo para voltarem ao Brasil, um representante do governo fez uma palestra com números da guerra para que fossem “embaixadores” da versão israelenese por aqui.
“Esse é um estado como esse precisa acabar na sua forma de funcionar, assim como o apartheid, o nazismo e o fascismo precisavam acabar”, aponta o ativista brasileiro Thiago Ávila.
- Manifestação pró-Palestina no centro de São Paulo
- Thiago Ávila, com bandeira do Brasil no ombro
Ele é representante da Flotilha da Liberdade, organização que navega por águas internacionais tentando levar ajuda humanitária à Palestina. No começo de junho, Thiago e mais 12 ativistas, incluindo Greta Thunberg, foram detidos e deportados por Israel ao tentar chegar na Faixa de Gaza.
No último dia 15 de junho, ele e milhares de pessoas saíram às ruas de São Paulo reivindicando a Palestina Livre.
O refugiado Mohammed, entretanto, não enxerga essa possibilidade e segue sua correria no Brasil.
“Israel tem muita força. E, na verdade, eu acho que todas essas crises nos países árabes atualmente têm influência de Israel”, desabafa Mohammed.