Contrato do lixo: Prefeitura de SP exclui 95% de pessoas recicladoras, sufoca cooperativas e compromete meio ambiente

Contrato do lixo: Prefeitura de SP exclui 95% de pessoas recicladoras, sufoca cooperativas e compromete meio ambiente

Sem licitação, gestão de Ricardo Nunes (MDB) renova acordo com grandes empresas por 20 anos e não tira política municipal do papel. Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis promete brigar na justiça

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Por Thiago Borges. Fotos: Vitori Jumapili (arquivo PEM/2021)

Na cidade de São Paulo, ao menos 20 mil pessoas têm a reciclagem como principal fonte de renda. Considerando as que coletam e vendem materiais para complementar o ganho, como pessoas de baixa renda ou em situação de rua, esse número pode chegar a 120 mil.

A projeção é do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), que defende a inclusão na cadeia produtiva e com dignidade no trabalho. A maioria das pessoas está nas ruas puxando carroças, carrinhos ou com sacos de resíduos nas costas.

Tudo isso depende de vontade política.

“São pessoas que estão fora da política pública, mesmo a legislação permitindo que ela fosse feita com a participação de catadores”, explica Davi Amorim, coordenador do setor de comunicação do MNCR.

Hoje, menos de 1 mil pessoas (cerca de 5% de quem tem a reciclagem como atividade principal) estão integradas às 30 cooperativas de reciclagem habilitadas pela Prefeitura de São Paulo. Essas cooperativas recebem e fazem a triagem de parte dos resíduos da coleta seletiva feita por caminhões das empresas Loga e Ecourbis nas ruas da cidade. Outras 15 entidades estão formalizadas, mas não têm convênio com a administração municipal; e pelo menos 107 atuam na informalidade, segundo mapeamento do MNCR.

(Foto: Vitori Jumapili/Periferia em Movimento)

“A coleta seletiva [em São Paulo] passa apenas em algumas ruas, nem todos os distritos são atendidos e é um sistema que há décadas só recupera 2% ou menos dos materiais produzidos na cidade. Não tem escala nem ganho, e o percentual não se elevou justamente porque entendemos que não é interesse [das empresas Loga e Ecourbis] fazer a reciclagem. Elas ganham muito mais com aterramento do que com investimento na reciclagem”, explica Davi.

Segundo a Prefeitura de São Paulo, todos os 96 distritos da cidade são atendidos pelo serviço de coleta seletiva, que percorre 75% dos endereços. A coleta seletiva somou 90 mil toneladas de resíduo sólido reciclável em 2023, enquanto a coleta de lixo domiciliar atingiu 3,4 milhões de toneladas na cidade.

Para as cooperativas e o MNCR, a coleta seletiva poderia avançar se a Prefeitura focasse na regionalização e na implementação do Plano de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PGIRS), aprovado em 2014. Construída com participação social, entre outras medidas o plano prevê a instalação de 96 centrais de triagem com as cooperativas – 1 por distrito da cidade.

Porém, recentemente os grupos foram surpreendidos com o anúncio de renovação do contrato da Prefeitura com a Loga e a Ecourbis. A concessão atual termina em outubro. Além de não passar por licitação, com autorização do Tribunal de Contas do Município (TCM), o novo contrato vai destinar R$ 80 bilhões para as empresas pelo período de 20 anos, até 2025.

“Findando o termo de contrato, a gente esperava que o contrato fosse renegociado porque a grande desculpa que a Prefeitura dá pra não fazer parceria com cooperativas era essa”, aponta Davi, do MNCR. Com a renovação, as cooperativas continuam sufocadas.

Em paralelo, o contrato prevê a instalação de uma usina para incinerar e gerar energia a partir da queima dos resíduos. A prática está em desuso em diferentes partes do mundo – da Europa à Ásia, do México aos Estados Unidos – pelo alto custo e impacto ambiental causado pela poluição.

Mandatos parlamentares questionam a renovação na justiça e o MNCR também prepara uma ação a ser protocolada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Como funciona a gestão do lixo em SP?

Em 2004, na gestão da ex-prefeita Marta Suplicy (PT), a Prefeitura fez uma parceria público-privada em que as empresas Loga e Ecourbis ganharam uma concessão de 20 anos para operar a limpeza urbana na cidade.

O município repassa recursos para que as iniciativas façam a coleta e destinação de resíduos na cidade e, entre os compromissos previstos, estavam investimentos em educação ambiental e criação de 31 centrais de triagem – 1 a cada subprefeitura – para ampliar a coleta seletiva na cidade. Apenas 11 foram construídas pelas empresas para a operação das cooperativas.

Clique para ampliar e entender a diferença dos materiais coletados (arte: Rafael Cristiano)

Clique para ampliar e entender a diferença dos materiais coletados (arte: Rafael Cristiano)

Com a implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, em 2010, a coleta seletiva se tornou obrigatória assim como a inserção das pessoas recicladoras na cadeia produtiva. Em meio a isso, o governo de Fernando Haddad (PT) negociou uma troca em que as concessionárias deixariam de construir 17 novos galpões para concentrar os trabalhos em 4 centrais mecanizadas. Apenas 2 saíram do papel: a estação Carolina Maria de Jesus, em Jurubatuba (zona Sul), e a da Ponte Pequena, no Bom Retiro (região central).

“Antes, os caminhões de coleta seletiva levavam materiais regionalmente para os grupos. A partir dessa construção, começaram a centralizar nesses equipamentos e apenas o que ia sobrando desse processo era direcionado para cooperativa. Várias cooperativas foram descredenciadas e muitas delas não resistiram e fecharam”, diz Davi. Segundo ele, 27 grupos chegaram ao fim.

Também há a burocracia. As cooperativas habilitadas pela Prefeitura têm de cumprir uma série de exigências, como alvará de funcionamento, pagamento de impostos e recolhimento para o INSS das pessoas cooperadas.

Cooperpac, cooperativa no Extremo Sul de São Paulo (Foto: Vitori Jumapili/Periferia em Movimento)

Cooperpac, cooperativa no Extremo Sul de São Paulo (Foto: Vitori Jumapili/Periferia em Movimento)

Por outro lado, o poder público não remunera os grupos pela prestação de serviços. O faturamento depende exclusivamente da venda dos materiais separados, mas uma parte considerável do resíduo precisa ser descartada – seja porque não é reciclável ou está imprestável.

O que sobra no caixa paga custos gerais de cada cooperativa, incluindo a remuneração do pessoal. O salário mínimo é garantido, mas dependendo da função e do tempo dedicado a pessoa pode receber mais do que isso.

“Por que as cooperativas não aumentam cooperados? Porque a renda é muito baixa, trabalhamos muito para ganhar pouco (…) A Prefeitura tem que pagar por prestação de serviço”, aponta Dulce Alves, da Cooperativa Chico Mendes, de São Mateus (zona Leste). “Mas as empresas não estão preocupados com as cooperativas, não têm interesse em aumentar a reciclagem na cidade”.

Recicláveis e crise climática

O aperto financeiro é ainda maior considerando a crise dos recicláveis.

“Até 2 meses atrás, a gente vendia o papel branco por R$ 1,20 o quilo. Hoje, tá por R$ 0,50. O papelão, que tava a R$ 1,50, hoje é vendido por R$ 0,70 o quilo, mas já chegamos a vender por R$ 0,30”, diz Kamila Alves, da Cooperativa Chico Mendes.

“O plástico teve queda de 70% nos últimos 2 anos. Isso sem falar do material que não voltou para a linha de comercialização, como o tetrapak”, complementa Dulce, também da Cooperativa Chico Mendes.

Dulce observa que os galpões acabam armazenando muito material que não encontra espaço no mercado para evitar o descarte em aterros sanitários – mais um fator que coloca em risco a preservação ambiental.

Valquíria Cândido, da Cooperpac (Foto: Vitori Jumapili/Periferia em Movimento)

Valquíria Cândido, da Cooperpac (Foto: Vitori Jumapili/Periferia em Movimento)

A viabilidade financeira também diminui a possibilidade de incluir mais pessoas no trabalho. Se no passado a Cooperativa Chico Mendes já teve mais de 60 pessoas cooperadas, hoje são apenas 30.

Valquíria Cândido, da Cooperpac, que atua no Grajaú (Extremo Sul), reforça que as cooperativas de reciclagem têm como vocação a inserção de pessoas que estão fora do mercado de trabalho, como mães solo, egressas do sistema carcerário ou chegando à terceira idade.

“As cooperativas conseguem atender pessoas com mais idade, acima dos 40 e até dos 60 anos. Como ficam essas pessoas em São Paulo, sem renda, pra ter uma velhice dignamente? A reciclagem gera postos de trabalho e pode aumentar o emprego na cidade”, conclui.

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