Por: André Santos. Edição: Thiago Borges. Arte: Rafael Cristiano.
“Tô cansado dessa porra / De toda essa bobagem / Alcoolismo, vingança, treta, malandragem / Mãe angustiada, filho problemático / Famílias destruídas, fins de semana trágicos / O sistema quer isso, a molecada tem que aprender / Fim de semana no Parque Ipê”
– Fim de Semana no Parque – Racionais Mc’s (Álbum Raio-X do Brasil, 1993)
O trecho do rap acima narra cenas comuns dos anos 1990, quando jovens das periferias de São Paulo começaram a utilizar a música para relatar e denunciar dificuldades do dia a dia.
Parte do Hip Hop, movimento de contracultura questionador e revolucionário desde o princípio, o rap chegou no Brasil nos anos 1980 mas estourou na década seguinte. Além dos Racionais MCs, diversos grupos emergiram, como Trilha Sonora do Gueto, Visão de Rua, Somos Nós a Justiça, Consciência Humana, Facção Central, entre outros.
Em suas composições, os coletivos evidenciavam o abandonos pelo estado às regiões periféricas e suas consequências, com fortes relatos sobre um dos principais problemas na época: a violência.
“A violência era maior em bairros como o Itaim Paulista, onde eu vivia, e em outras quebradas. Quando conheci o rap e o Hip Hop, ele me deu um norte, uma direção. Me trouxe autoestima e orgulho de ser da quebrada. Essas coisas foram me afastando do caminho errado e criaram minha identidade” – Alessandro Buzo, de 51 anos, escritor, cineasta e ativista social.
Nascido e criado no Itaim Paulista (zona Leste paulistana), hoje Buzo mora em Camburi, São Sebastião, onde promove o Sarau Urbano. E sua trajetória é marcada pelo rap, essencial por apresentar a ele e outras pessoas novas possibilidades em detrimento às que geralmente apareciam em suas vidas naquela época.
Proceder
“Um homem na estrada recomeça sua vida / Sua finalidade, a sua liberdade / Que foi perdida, subtraída / E quer provar a si mesmo que realmente mudou / Que se recuperou e quer viver em paz / Não olhar para trás / Dizer ao crime, ‘nunca mais!’ / Pois sua infância não foi um mar de rosas, não”
– Homem na Estrada – Racionais Mc’s (Raio-X do Brasil, 1993)
O rap apontou que o maior “inimigo” da população periférica não era a vizinhança, que por vezes era ao mesmo tempo vítima e agente reprodutora da violência. O inimigo em si era e é o sistema opressor que permite e é complacente com o cenário de caos.
Dessa forma, o rap reinventou a racionalidade da masculinidade periférica e tornou-se um dos elementos responsáveis pela redução da violência nesses territórios a partir da conscientização através de composições.
“Pode se dizer que o rap foi sim importante no processo de pacificação. Quando alguma coisa te afasta do caminho errado e evita que você vá preso, ou morra, ela está automaticamente te trazendo a paz”, conta Buzo.
A visão de Giomar Souza, conhecido como Gil BF, é um pouco menos simplista. O morador de 48 anos da zona Leste de São Paulo é DJ e editor do site Bocada Forte, primeiro portal dedicado exclusivamente à cultura Hip Hop na América Latina e que está em funcionamento desde 1999.
São pelo menos 25 anos imerso na cultura e, por isso, ele entende que é preciso aprofundar a discussão. Na visão de Gil, alguns territórios pode ter passado por esse processo, mas não é possível creditar ao movimento a responsabilidade pela pacificação das quebradas de São Paulo, já que os territórios sofrem até hoje com inúmeras violências e negligências até os dias atuais.
Mas Gil não deixa de reconhecer mudanças comportamentais importantes promovidas pelo rap..
“Se formos falar da paz nas quebradas entre os sujeitos periféricos, nesse ponto sim, não apenas o rap, mas a cultura Hip Hop como um todo (principalmente através das posses e crews) contribuiu para que houvesse uma conscientização sobre a nossa responsabilidade em relação a isso” – Gil BF, DJ e editor do Bocada Forte
Como canal de comunicação e expressão, o rap segue contribuindo diretamente para a formação de uma identidade periférica, com influência na autoestima até questões de conscientização política e social.
“O rap forjou essa identidade na música, na moda, nas gírias, no comportamento, etc. Até hoje temos reflexos dessa identidade que acabou por influenciar até pessoas que nem curtiam rap e também pessoas que nem eram periféricas”, completa Gil.
Ainda tem força para mobilizar?
Nesses mais de 30 anos entre a popularização do rap e o cenário que vivemos hoje, de absoluta consolidação popular e midiática do gênero musical e inúmeros questionamentos sobre o quanto o movimento segue fiel aos seus fundamentos, o rap reflete as profundas significativas mudanças da sociedade.
De acordo com pesquisa divulgada em alusão à celebração de 50 anos do Hip Hop pelo Spotify em agosto de 2023, o rap é o segundo gênero musical mais popular na plataforma, com um crescimento de 68% em consumo nos 3 anos anteriores ao levantamento. O Brasil se destaca como 3° maior consumidor do mundo, e teve um aumento de 40% nas buscas entre maio de 2022 a maio de 2023.
O aumento da popularidade do gênero é positivo, mas tem questões. Boa parte do público novato chega ao nicho com pouco ou nenhum contato com quem construiu o movimento, inclusive ideologicamente, como apontou a Periferia em Movimento em reportagem publicada há 1 ano.
50 anos depois, para onde vai o revolucionário movimento Hip Hop?
“A força do rap continua a mesma. O alcance dos raps que têm essa preocupação é que diminuiu, salvo algumas exceções. A dinâmica imposta por grandes redes e plataformas, que privilegiam conteúdos e músicas que servem ao capital e à destruição de corpos e mentes periféricas, faz com que a força desse rap consciente, de mobilização social, não chegue aonde precisa”, aponta Gil.
Buzo segue a mesma linha de pensamento. O agitador cultural aponta que o movimento Hip Hop se mantém potente, mas que essa força já não é capaz de alcançar o mesmo efeito que em outros momentos devido à ascensão de produções sem esse viés.
“Algumas músicas tomaram conta da juventude periférica com bem menos conteúdo nas letras, sem a conscientização, e isso faz com que o rap perca essa força que tinha nos anos 1990, por exemplo. Sem contar que as letras atuais são bem menos politizadas do que antigamente. O Hip Hop segue vivo, mas com menos alcance e força, isso é uma pena”, diz Buzo.
Gil chama a atenção para os grandes festivais de música, em sua maioria patrocinados por bebidas alcóolicas e romantização do uso excessivo dessas substâncias.
O editor do portal Bocada Forte aponta que artistas de rap que escolham se posicionar contra essa romantização se comprometeriam comercialmente, uma vez que passariam a ser boicotados pelas organizações desses grandes eventos e também pelas plataformas de distribuição.
“A maioria das músicas de sucesso são músicas que falam sobre excessos de todos os tipos, consumo, ostentação, armas, desrespeito às mulheres, misoginia, hiper sexualização de meninas, coisas que fortalecem a exploração do capital e ao mesmo tempo destroem os corpos periféricos. Mas o rap responsável e a cultura Hip-Hop que constrói e salva ainda existem e resistem. O próprio Bocada Forte é um exemplo dessa resistência”, afirma.
Apesar dessas problemáticas, o rap se mantém como um potente instrumento de transformação social e, aliado à relevância conquistada mais recentemente, pode gerar, novamente, bons frutos.
Para isso, é necessário manter-se atento e adaptar-se às mudanças que ainda virão, sem esquecer de enaltecer e manter vivo o que foi importante para a construção dessa cultura.
“O individualismo não faz parte da cultura Hip-Hop, e justamente por isso ela chegou aos 50 anos forte e potente, salvando e mudando vidas ao redor do mundo. Aos olhos do capital, do mercado e da indústria é uma cultura a ser destruída, por isso o investimento nas vitórias individuais. É para enfraquecer a nossa coletividade”, finaliza Gil.
André Santos, Thiago Borges, Rafael Cristiano