Dilma afastada, Temer no posto, Paulista ocupada e memes bombando na internet. Será que ele aguenta o tranco? Será que ela volta ao trono? Será que vazou um novo áudio? Notícias distorcidas, debates intermináveis, dúvidas em profusão, e o povo continua sob disputa. Mas, nesta treta toda, quem tá interessado em ouvir os anseios do povo?
Recentemente, Guilherme Boulos (coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST) afirmou que as periferias não se veem contempladas no sistema político. Para Eliane Dias, advogada e produtora dos Racionais MCs, diz que o povo tem que aparecer mais porque “quem pensa na periferia é a periferia”.
Na Virada Cultural do último final de semana, Criolo apareceu com um “Temer Jamais” no telão do fundo de palco, Emicida questionou a legitimidade do presidente golpista em um palco no Grajaú e, no Extremo Leste, Mano Brown lembrou que coisa de favelado não vai voltar a ter, como o voltou o Ministério da Cultura.
Quem luta por nós, Brown?
O Periferia em Movimento falou com artistas, coletivos e militantes de movimentos sociais do Extremo Sul de São Paulo (onde atuamos geograficamente) para saber se e como a conjuntura nacional impacta no trampo de quem tá na ponta, na beira da represa, sem holofotes e sinal de internet.
Como é que tá a quebrada? Ou “Tragédias da vida privada”
Tatiana Monte tem uma lembrança latente sobre o endereço onde morava quando pequena. Na rua Dolcinópolis, BNH (como é conhecido o Conjunto Habitacional Faria Lima, no Grajaú), ela brincou, sentou na calçada com vizinhos, trocou receita de bolo, falou e ouviu sobre os percursos do trabalho pra casa, sobre as novas lojinhas no caminho. Tocou campainha pra deixar a chave com a vizinha, pedir ajuda, fazer vaquinha e fechar a rua com todos em volta da fogueira.
“Mas cada vez mais os espaços públicos, os ‘quintais compartilhados’, estão sendo sucateados. Perdemos ao longo do tempo o costume de trocar, de vivenciar experiências coletivas”, lembra a atriz marginal.
“Esse cerceamento de lugares comuns, de espaços de trocas e vivências, faz com que a gente preencha esse tempo em vida com vazios, um esvaziamento do tempo que impossibilita as experiências, um tempo plasmado no presente sem memórias e expectativas” – Tatiana Monte
Para Tatiana, a substituição das rodas de conversa na calçada por uma vida cada vez mais privada, em volta da TV e sob influência da intensa campanha midiática, foi o combustível que inflamou o golpe que tirou o PT do governo federal – e o que inflama os golpes diários aos quais estamos submetidos diariamente.
“O sistema capitalista, selvagem, é capaz de tudo pra conseguir o que querem fazer essas pessoas que estão nesse front da perversidade, do poder”, nota Wellington Neri, o Tim, artista marginal e articulador do coletivo Imargem.
Do boteco ao Facebook, a culpa de todos os problemas era descontada na mulher na Presidência. “O preocupante é o quanto a galera comemorou a saída da Dilma. Fiquei impactada em ver aqui no meu bairro a galera comemorando, soltando fogos e perceber que a gente tá falhando no trampo de base”, lembra Elânia Francisca, que faz parte do coletivo feminista Mulheres na Luta.
Isso ressoa em outros aspectos do cotidiano, já que tirar o PT significa derrotar um projeto que o próprio partido já não representava. “Eu mesmo fui questionado por alunos e pais sobre os motivos de minha postura contra a ditadura, ou a favor das ocupações das escolas pelos alunos e dos movimentos de moradia e terra. E alguns pais se apresentaram como eleitores de Bolsonaro”, lembra Claudemir Mazuchelli, professor da rede pública.
“Esses dias eu ouvi alguém dizendo que a quebrada tinha que pagar uma taxa pra manter a escola pública na região”, observa o DJ Bola, da produtora cultural A Banca, do Jardim Ângela, que se surpreendeu: “A gente já paga pela escola pública”.
Promessa demais, avanço de menos e só a gente chora pelos nossos
O que preocupa Carmem Soares, atriz da companhia teatral II Trupe de Choque, é o desmonte dos projetos sociais encaminhados no governo anterior pelo atual governo golpista. “E o mais perigoso: os caras vão privatizar tudo e daí é claro que a longo prazo isso vai só sobrar pra nós daqui desse lado da ponte”, completa.
“A economia solidária, como um modelo inovador de equidade, corre sérios riscos em um País que ainda não percebe que a mudança está em sacudir a base pros caras lá de cima caírem”, nota Renato Rocha, do coletivo socioambiental Dedo Verde, que atua nos princípios da solidariedade e vê perda de espaço para essa discussão.
Ainda que os pequenos avanços obtidos sejam fruto de lutas históricas, e não de um governo específico, o rapper e educador Rosboul acredita que havia um espaço maior de negociação. “Existe outro tipo de escuta com as lutas e demandas da população, ainda muito longe do ideal, mas com resultados mais palpáveis [em comparação aos governos do PSDB, por exemplo]”, explica.
Isso se reflete em decisões como relegar a pasta da Igualdade Racial ao segundo plano, com prejuízo a uma série de medidas de reparação ao povo preto. “As ações afirmativas no geral têm propósito de levar população negra a outros patamares de vida social, cultural, econômica. Então, o que vemos é um retrocesso”, observa Lili Souza, do coletivo Malungo.
Já Vinícius Faustino vê o impeachment como um processo de continuidade, e não de ruptura de um modelo. “O governo Temer vai tratar as políticas que vinham sendo feitas pelo governo Dilma da mesma forma. Isso a gente consegue perceber nos cortes da educação, que começaram com Dilma e continuam com Temer”, nota o militante da Luta do Transporte no Extremo Sul.
As conquistas do acesso ao consumo ou à educação, por exemplo, são de certa forma ilusórios para Fernando Ferrari. “A casa melhorou da porta pra dentro, mas do lado de fora as nossas angústias são as mesmas”, ressalta o integrante do Movimento Cultural das Periferias, que há três anos pauta a criação da Lei de Fomento às Periferias em São Paulo.
Entre essas angústias, uma delas é compartilhada por praticamente todas as pessoas ouvidas nesta reportagem: o genocídio do povo preto, empobrecido e das quebradas.
“Não sou a favor da Presidente Dilma e nem do PT, sou a favor das quebradas e das pessoas que estão na trincheiras comigo. Mas, se já estava difícil se manter vivo e lutando, e agora?”, indaga a rapper Tati Preta Soul, dos coletivos Abayomi Aba e Mojubá.
Para Fuca, militante da Frente Negra do Grajaú, tanto governos de direita do PSDB quanto de esquerda do PT são responsáveis pelo genocídio do povo preto. Ao ano, mais de 60 mil assassinatos acontecem no Brasil – 75% das vítimas são negras. “Não cai nessa campanha do golpe”, diz Fuca, que não sente dor na consciência por não ter ido às ruas para defender a permanência de Dilma.
De quem é a luta, como lembra Mano Brown? Quem chora pelos nossos?
“Quem fala de golpe e não mostra alternativa também é golpista, porque quer se perdurar no governo”, provoca Fernando Ferrari. “Realmente a gente tem que lutar pela democracia, mas isso vai acabar uma hora e, depois, quem vai vir lutar com a gente na periferia e bater de frente com o Estado?”, questiona o midiativista Edu Graja.
Exemplo prático: o Ministério da Cultura, que morreu e ressuscitou poucos dias depois graças à luta de trabalhadoras e trabalhadores da cultura. “Luta muito importante. Só que ficamos pensando depois que tem aí um quezinho de elite, né? E tem uma questão tangente que é a luta das mulheres, das pessoas pretas e por direitos humanos, que [deveria] estar no centro [do debate] também”, lembra Elânia Francisca.
Fuca lembra que, independente do governo, o rap sempre apontou críticas ao sistema. E completa: “Tem secretarias aí que servem pra cooptar e colocam nossas pautas como adendo, sendo que somos maioria da população. E sempre com o domínio da supremacia branca”.
A mudança não virá de cima. “Estamos à mercê de uma cultura que acredita na salvação a partir de um ou uma candidato ou candidata herói ou heroína que vai transformar a realidade do País, o que já sabemos que nem se aproxima da verdade”, observa Robsoul.
Regiane Soares resume a questão em uma frase: as periferias continuam em luta por sobrevivência. “Porém, a diferença consiste na seguinte equação: no projeto político proposto na figura de Dilma Rousseff, nossa luta era pela ampliação dos direitos, pela manutenção e aprimoramento dos avanços conquistados. E no projeto de Michel Temer, nossa luta será contra o ódio, o retrocesso e a negação da nossa existência”, diz ela, que integra os coletivos Rusha Montsho e Juventude Politizada de Parelheiros.
Rupturas, panelas, resgates e quintais
Equipe sem mulheres, jovens e negros. Ex-secretário das chacinas de São Paulo escolhido como novo Ministro da Justiça. Vazamento de conversas de poderosos da nova velha gestão explicitando o que de fato está em jogo… Para Marcio Bhering, que faz parte do Comitê Juventude e Resistência, a percepção é de que as cagadas iniciais do governo golpista de Temer estão servindo para as pessoas se atentarem aos acordos políticos. “Pelo que converso com as pessoas na rua, amigos do samba, do futebol e tal, houve uma mudança de opinião durante esse processo todo”.
De fato, os motivos pelos quais as panelas batem são diferentes. “As panelas da quebrada muitas vezes estiveram vazias. E a luta, por mais que seja caótica e com dificuldades de entendimentos, passa longe das panelas da madame”, lembra Tatiana.
E o que emergirá desse descontentamento, que não é de hoje?
“Temos que fazer um movimento de unificação das lutas e passar por uma discussão sobre macropolítica, discutir o que o Henrique Meirelles [ministro da Fazenda] tá falando”, aponta Tim, do Imargem, que defende a apropriação desse sistema e a discussão sobre a reforma política, assim como outras pessoas ouvidas nessa reportagem.
Já Vinícius, da Luta do Transporte, defende uma ruptura com a política de pactos e conciliação nacional dos últimos 13 anos. “É um momento de rachar com esse projeto petista e tentar construir uma nova posição de luta independente ao Estado e ao Partido dos Trabalhadores”.
A inspiração vem dos trabalhadores e dos estudantes secundaristas, que ocupam fábricas e escolas exigindo participação direta e efetiva nas decisões de seu próprio destino.
“Dentro do movimento secundarista, que é apartidário, a gente se coloca pra barrar os cortes independente de quem estiver lá, se é o Temer, o PT, o PSDB”, diz a estudante Ana Carolina, 18 anos, que ocupou a ETEC Jardim Ângela.
“Essa juventude de hoje tem muito o que contribuir com cenário político atual e futuro. Já deu o tempo desses políticos velhos. A gente precisa de gente nossa lá”, reforça Bruninho Souza, 21 anos, da Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, localizada no bairro de Colônia Paulista, Extremo Sul.
Se o genocídio é uma angústia geral, outro consenso é fortalecer o trabalho de base. “A gente não faz parte do filme Aquarius nem anda nos tapetes vermelhos de Cannes, mas nossa manifestação vem sendo feita diariamente, nas escolas”, conta Jaison Pongiluppi, da Casa Ecoativa, na Ilha do Bororé.
Como “antídoto” ao genocídio que não é notíciado, Fuca defende o ensino da da história e cultura africana e afrobrasileira nas escolas, apontando fatos para além dos 400 anos de escravização de homens e mulheres negros e negras. “Essa luta tem que visar o resgate de nossa história, não contando a história a partir da escravidão, que serve à esquerda. Um dos avanços seria a lei 10.639, que tem 13 anos e não foi implantada”, aponta.
“A galera precisa cada vez mais conseguir sair dessa bolha imposta milimetricamente pelas redes sociais e pela mídia” – DJ Bola, da A Banca
Ficar de braços cruzados nunca foi opção, lembra Lili. “Temos que ter esse trabalho pedagógico, falar o que é luta e cada um se descobrir na luta, que se dá de diferentes formas”.
O momento é de intensificar as ocupações dos nossos quintais compartilhados. “Precisamos voltar a criar espaços de trocas coletivas, sentar na calçada e falar sobre as nossas ‘experiências’”, conclui Tatiana Monte.
Colaboração: Mariana Belmont
Thiago Borges
1 Comentário
[…] isso, somos medalha de ouro em genocídio. E isso não é considerado escandaloso. Enfim, quem luta por nós? Aqui, o golpe é […]