Quando começa o atabaque, é impossível não sentir uma energia percorrendo o corpo.
Os sons de tambores, chocalhos e outros instrumentos de origem africana se misturam a flautas, violinos e bases eletrônicas, enquanto vozes cantam em português e dialetos do outro lado do oceano para um corpo de bailarinas no palco.
Elas representam os orixás, deuses africanos que representam as forças da natureza. Mas também representam o povo que, ao longo de quatro séculos e meio, mantém firmes as raízes ancestrais do povo brasileiro.
Herança cultural africana deixada pelos escravos trazidos para cá na colonização, os orixás estão presentes no nosso dia a dia: seja no típico acarajé, que é a comida oferecida aos deuses do candomblé, seja em rituais resultantes do sincretismo religioso como a lavagem do Bonfim ou as homenagens a Iemanjá que acontecem entre dezembro e fevereiro no litoral.
Tudo isso constitui “Terreiro Urbano”, um espetáculo contemporâneo inspirado em elementos tradicionais da cultura afrobrasileira e desenvolvido pelo Treme Terra – grupo de música e dança que baseia sua atuação em manifestações da diáspora africana fundado em 2006 no Morro do Querosene (zona oeste de São Paulo) e que hoje está sediado no Rio Pequeno.
Por conta disso, em 2011, os integrantes do Treme Terra sentiram a necessidade de trazer os orixás para suas manifestações artísticas. Cada um ficou responsável por pesquisar sobre um desses deuses e apresentar suas características ao restante do grupo. Após um ano de pesquisas, em janeiro de 2012 foi criado o “Terreiro Urbano”, que envolve 30 pessoas, entre o palco e os bastidores.
De Exu a Oxalá, as homenagens seguem a ordem do xirê (o rito de saudação aos orixás do candomblé), passando por Ogum, Oxóssi, Oba- luaiê, Ossaim, Oxumaré, Xangô, Oxum, Iansã, Nanã e Iemanjá.
“Nosso desafio era como identificar os orixás, que são elementos da natureza, numa cidade como São Paulo”, diz Adonai Agni, músico do Treme Terra e administrador do Afrobase, projeto social resultante do trabalho do grupo.
Xangô, o orixá da justiça, se identifica nas letras de contestação do rap do grupo Z’África Brasil. Os flautistas e violinistas do grupo de música erudita Quinteto Abanã complementam o espetáculo, que aconteceu pela sexta vez na semana passada, no auditório do Museu de Arte de São Paulo (MASP), em plena avenida Paulista.
Como no terreiro tradicional, o final do show vira uma roda onde crianças, adolescentes e adultos – do palco e da plateia – dançam no ritmo do batuque.
Mas engana-se quem acha que se trata de um ritual religioso. Tudo é uma releitura de uma mitologia. E, com o resgate da história ancestral brasileira, o Terreiro Urbano rompe barreiras inclusive por ter evangélicos na apresentação.
“A gente traz para cá os mitos dos orixás, não a manifestação religiosa”, diz Hércules Laino, percussionista do Treme Terra e educador no projeto Afrobase.“Existe muito preconceito com tudo que é relacionado à África. Os orixás fazem parte do cotidiano de muitos povos africanos, tanto quanto os mitos da Grécia Antiga”.
Thiago Borges