Projetos culturais transformam a realidade nas periferias, mas sofrem com falta de verba

Projetos culturais transformam a realidade nas periferias, mas sofrem com falta de verba

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Tempo de leitura: 11 minutos

Por Marcelo Lino Jr. Edição: Hysa Conrado. 

Em Santo André, na Região Metropolitana de São Paulo, a Favela do Titan nasce ao final da rua Icatu, onde uma estrada de terra se inicia depois do asfalto de concreto, das adegas e do barulho de escapamento das motos. Na oitava residência da primeira descida, fica a iniciativa Bolinha Cultura nas Favelas. 

Criado há cerca de seis anos e desenvolvido como um esforço cultural, social e coletivo, o projeto realiza trabalhos de assistência social às famílias, como doação de cestas básicas, encontros artísticos, apresentações musicais e rodas de conversa.

Casa Bolinha Cultura nas Favelas./Crédito: Divulgação

Conhecida na região como “casa”, a iniciativa conta com uma organização popular e é tocada por Lucas Pereira, o Bolinha, 31; Alex Santana, conhecido como Chalex, 29, e Douglas Santos, o Filhote, 33. 

Estudante de fonoaudiologia, Lucas é o idealizador e afirma que todos da comunidade são bem-vindos. Além disso, ele também destaca o convívio harmonioso entre candomblecistas e evangélicos na sua quebrada.  

A organizadora cultural Alessa Beatriz, de 23 anos, conta como a Bolinha Cultura foi importante para sua formação artística. Primeira mulher a frequentar o coletivo, ela mora no bairro desde a infância e viu a favela e o projeto crescerem.

“Aquilo tudo não era nada, a gente começou a cantar em cima de um pallet. Ali, mudou minha história como uma pessoa inclusa na sociedade dentro da periferia”, afirma Alessa.

Ela conta que, antes do projeto, nunca havia se sentindo bem-vinda em qualquer outro ambiente a ponto de poder se expressar artisticamente como hoje. 

“Eu precisava da força daquele movimento, fazer com que outras pessoas pudessem participar e se desenvolver. Saber que naquele lugar eu posso trazer minha arte e que ela será acolhida”, afirma. 

Os desafios para manter a cultura de pé nas quebradas

Se trabalhar para viver já é uma questão para pessoas periféricas, bancar um projeto cultural é um desafio ainda maior. O orçamento da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo em 2024 foi de R$818,05 milhões. Deste montante, a pasta destinou R$13,7 milhões, menos de 2%, para a Lei de Fomento à Cultura da Periferia.

Criada em 2016 para garantir direitos e assegurar um olhar para a cultura da periferia, o acesso ao fomento e a outros editais públicos ainda é um problema para os trabalhadores do setor cultural nas quebradas. 

Espaço Bolinha Cultura nas Favelas./Crédito: Arquivo Pessoal

“Sai muito dinheiro do bolso da gente. É a maior luta, sim. E a gente sabe o quanto o projeto move a gente, faz a gente respirar”, destaca Lucas Pereira, o Bolinha.

Com contatos de uma advogada interessada na causa e de uma amiga que os ajudou na elaboração do projeto, esse ano, o coletivo conseguiu fomento da PNAB (Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura).

A Casa, além dos projetos de construção social, busca atender as infâncias do bairro. Para isso, tentam aumentar seus recursos para oferecer, além do espaço e das referências, cursos de capacitação para os jovens da quebrada.

“A gente está em 2025, foram muitos anos pra gente conseguir se inscrever em um [edital] – e não por corpo mole, é porque é difícil colocar uma escrita bem formalmente do jeito que eles querem, é difícil reunir um portfólio”, desabafa Alex.

Para Alex, faria mais sentido que uma quantia fosse destinada para equipamentos como o Bolinha sem a necessidade de um edital.

“Esses editais, fomentos, são portas de exclusão. Não é para todos, no meu ver. Esse dinheiro tinha que chegar de uma forma diferente, já que é para cultura e fomentar os projetos culturais que estão na quebrada”, afirma.

A verba em outras mãos

Juarez Ferreira, mestre de capoeira e fundador do espaço Angola Novo Mundo./Crédito: Zé Amaral

Juarez Ferreira, 45, é morador do Parque Novo Mundo, Zona Norte de São Paulo, desde que nasceu. Na sua favela, dividida entre barracos e oito blocos de prédios Singapura, há seis anos o mestre dá aulas de Capoeira Angola em seu espaço, chamado Angola Novo Mundo. 

“Quem pega grana da cultura está nesses bairros [mais abastados]. Vila Madalena, Pinheiros. É uma galera mais atenta, não é necessariamente da quebrada, mas foi para a quebrada e está se organizando e pegando esses projetos”, afirma Juarez. 

Ele fala de alguns coletivos já bem estabelecidos no setor cultural, que têm maior facilidade para conseguir aprovação em editais, tanto pelo conhecimento técnico na hora das inscrições, quanto pela noção de mercado, contatos políticos e divulgações de eventos. 

“Além de você [artista e produtor cultural da periferia] ter pouco acesso a esses editais, quem pega são as pessoas que não precisam”, completa.

Sua reclamação gira em torno da comercialização de cultura de quebrada em eventos onde os periféricos não frequentam. 

Além de capoeirista, ele também é artista, brincante de cultura popular, músico e professor. Juarez ganhou uma bolsa do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa) e hoje faz pós-graduação em Urbanismo Social.

Casa Angola Novo Mundo./Crédito: Divulgação

“Eu não tenho faculdade, como é que eu estou fazendo a pós-graduação? Os caras viram meu trampo, falaram: ‘esse maluco tem que estar aqui’. Eu sou conhecido no mundo. Você vai na Europa, a galera sabe quem sou eu, você vai nos Estados Unidos, sabem quem sou eu. A galera me conhece de uma das maiores rodas de capoeira do mundo”, afirma Juarez, que foi aluno de um dos maiores capoeiristas da história, o Mestre Ananias.

O projeto gerido por ele só passou uma vez no edital da PNAB, em 2022. Além disso, em 2025 também foi premiado como um projeto de iniciativa popular pelo Periferia Viva, edital do Ministério das Cidades em parceria com a Secretaria Nacional de Periferias. 

O afastamento e falta de interesse dos moradores do território também pesam nos seus sentimentos, já que, segundo ele, o que faz ali é para a favela.

Falta iniciativa [dos moradores] e, se eu falo, machuca. Porque a gente é favelado. A gente é quebrado, temos que fazer por nós. Eu falo para a galera: ‘Vocês tem que vir para cá dar aula, fazer o que vocês sabem fazer. Se você gosta de uma batalha de rima, ensina as crianças a rimar. ‘Ah, eu gosto de moda’, traz umas roupas para falar de moda. Faz alguma coisa”, desabafa.

O direito ignorado

Diferentemente da educação, o acesso à cultura não está assegurado por uma rede de equipamentos como as escolas.  Para Gil Marçal, gestor cultural com experiência na articulação e coordenação de programas de incentivo à cultura, como o Programa VAI, é preciso entender o direito à cultura como já se entende o direito à educação.

“Todos sabemos que a educação é um direito do povo e um dever do Estado”, ressalta. 

Gil Marçal./Crédito: Jozzuu

Aos 46 anos, ele atua como Gerente de Conteúdo do Museu das Favelas, mas ainda se lembra dos dias de trabalho na Secretaria Municipal de Cultura e destaca a importância de uma reformulação na linguagem técnica dos editais. 

“É preciso existir mecanismos que garantam investimento nas periferias e favelas. Precisamos urgentemente mudar a forma de escrever editais para a cultura. Esses editais precisam utilizar linguagem de simples entendimento, rompendo com uma linguagem técnica que serve para excluir quem não domina estes termos”, afirma. 

De modo geral, gestões culturais e equipamentos centralizados não reconhecem a cultura que existe na periferia e na favela. A concentração de recursos públicos aplicados nas regiões economicamente mais nobres da cidade corrobora para esse cenário. 

Mas, de alguma forma, o que se fala, o que se veste e o que é tendência popular, muitas vezes para de uma ebulição proposta pela periferia. Mesmo com o afastamento da população periférica do que se tem como centro da cultura e das artes, as tradições das periferias seguem resistindo por meio de alguns personagens. 

“Pensam que para ter acesso à cultura a gente tem que ir sempre lá no centro, nunca nas zonas periféricas. Mas o barato dessa coisa é que quem está fazendo esse trabalho lá, mora na periferia. Então é uma apropriação da nossa cultura. Temos que fazer nosso povo entender que tudo o que a gente faz é cultura”, ressalta Alex.

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