A presença dos “sem religião” nas periferias

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Por Marcos Nicolini*

Há um século, não ter religião era uma postura intelectual reservada a um grupo de pensadores seletos. Alguns poucos homens e mulheres se atreviam a tomar distância das religiões, principalmente dos cristianismos. Não que este questionamento sobre os deuses tenha sido inaugurado neste tempo. Antes, na Grécia antiga – 500 a.C. – já surgira alguns que punham em dúvida a necessidade de se fazer referência ao que podemos chamar de “hipótese deus”. Isto é, a necessidade de deus ou dos deuses para que fosse possível o conhecimento sobre o mundo.

Num mundo onde a legitimidade política, as explicações sobre a natureza e as narrativas míticas eram entrelaçadas e repleta de deuses, aqueles homens tomaram outras razões. Alguns diziam que tudo o que existia na natureza era formado por água, outros que era pelo fogo e houve quem dissesse que a matéria era feita de um elemento indivisível e indestrutível: o átomo. A questão é que estes homens, ao proporem um elemento fundamental e material, não tomavam as divindades como recurso necessário para explicar a natureza.

Seus escritos conhecemos em parte e suas vozes foram por milênios colocadas nos fundos de bibliotecas, digamos assim, e isto não pela artimanha ou violência do cristianismo, ou do islamismo, mas pelos próprios pensadores gregos como Platão e Aristóteles. Tal pode ser parcialmente explicado pelo fato que a Cidade Clássica, Antiga e Medieval encontraram nas divindades o fundamento, a explicação última. Para muitos os reis ou descendiam diretamente dos deuses, ou eram por eles escolhidos e mantidos. Manifestar-se contra um monarca era opor-se aos deuses, ou a Deus. Desta maneira a crença nos deuses ou num deus era em larga medida uma crença nos poderes que suportavam os reis, e, por esta via, era a crença nas monarquias, o poder concentrado em uma só pessoa.

O século XVI serve como um marco de busca de alternativa diante do esgotamento das formas de pensar produzidas pelo cristianismo dentro da Europa Medieval. A questão é que pensadores procuraram novos fundamentos, novas caminhos que permitissem expandir o conhecimento. A Modernidade, então, é o nome que damos a esta busca por novas maneiras de pensar, as quais buscam se distanciar da forma anterior, àquela produzida pelo pensamento religioso e cristão europeu.

A fim de marcar as diferenças entre o pensamento anterior (religioso e cristão) e o novo (moderno), aqueles homens (não podemos aqui fazer referencia às mulheres ainda) chamaram a Idade Média de Idade das Trevas, na qual reinava a superstição e a ignorância. Enquanto que o pensamento Moderno passava a ser chamado de Iluminista (luz) e racional. Por exemplo, o pai da sociologia positivista Auguste Comte dizia que a Religião desapareceria com a ampliação do conhecimento. Ampliação, aqui, no duplo sentido: quando se refere a se saber mais sobre mais coisas, como quando se diz que mais pessoas terão acesso a tais conhecimentos.

As elites passaram a acreditar no fim da Religião como resultado do progresso do conhecimento. Um certo sentimento antirreligioso estava vinculado ao pensamento racionalista e iluminista. Mas não somente a religião sairia de cena, mas o progresso moderno, o qual trazia a promessa de ampliação do bem estar e da felicidade, que não mais se restringiria à nobreza e aos religiosos. A igualdade passa a ser uma pedra fundamental para se entender a Modernidade.

O século XX começa com estas certezas, pelo menos na Europa: progresso do conhecimento, ampliação do bem estar e da felicidade, e a saída da religião, o seu crepúsculo. Mas o século em que deveríamos ver a substituição da superstição pelo conhecimento científico, da religião pela ciência, do medo pelo bem estar, presenciamos duas Grandes Guerras, a Guerra Fria, o crescente distanciamento entre ricos e pobres no mundo, e o retorno da Religião, sob as vestes do Fundamentalismo.

Em países como o Brasil, vimos, a partir da década de 1970, a radicalização das diferenças sociais, o aumento do fosso entre ricos e pobre, e o surgimento e crescimento das favelas nas grandes cidades do país: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife, etc. É lugar comum olharmos para a bandeira do Brasil e vermos as palavras de Ordem e Progresso, contudo vermos o crescimento das periferias urbanas e a precariedade que marcam estes espaços urbanos.

A periferia urbana é menos um conceito ligado a uma dada geografia da cidade, isto é, às regiões mais distantes do centro da cidade, e mais um conceito que procura representar as múltiplas formas de precarização das populações, aquelas que não se beneficiam plenamente das “bênçãos” do Progresso. As periferias urbanas são marcadas por menores rendas, baixa escolaridade, precariedade na posse e nas moradias, presença precária do Estado, quando pensamos em escolas, hospitais, saneamento público, transporte, etc.

Por outro lado, nas periferias urbanas podemos constatar maiores contingentes de negros e pardos, evangélicos pentecostais e maiores índices de violência urbana. Tendo como base tal demarcação, podemos dizer que a periferia urbana está presente inclusive nos centros das metrópoles brasileiras e que há periferias, ou seja, cada periferia carrega características próprias.

Para o espanto de alguns pesquisadores mais atentos, nas periferias urbanas de São Paulo, por exemplo, há uma presença crescente de indivíduos que se autodenominam sem religião. Se por um lado a crença iluminista no progresso havia conseguido produzir conhecimento tal que abalou as bases religiosas e a forma de produzir conhecimento até então aceitas.

Por outro lado a crença iluminista no progresso falhou em suas promessas, não apenas no aumento da violência das guerras desde o início do século XX, como produziu periferias, não apenas urbanas, como nacionais. Há países inteiros que são periferias das periferias, como o nosso quase vizinho Haiti. Outra falha nas previsões da Modernidade Iluminista foi o afastamento da religião à medida da ampliação do conhecimento, por parte do indivíduo.

O problema que nós pesquisadores enfrentamos é ampliar nosso conhecimento sobre aqueles indivíduos das periferias urbanas brasileiras, no nosso caso específico, as periferias urbanas de São Paulo, e que se autodenominam sem religião. Dentre os indivíduos sem religião na cidade de São Paulo, destacam-se aqueles que são negros ou pardos, de baixa renda, mais homens do que mulheres e com baixa escolaridade. Cresce no Brasil a quantidade de pessoas que se autodenominam sem religião e que têm poucos anos de frequência às escolas. Este dado parece contradizer às crenças Iluministas de que o abandono das Religiões passaria pelo aumento da escolaridade.

Parece-nos, neste momento, que a posição elitista daqueles pensadores modernos não os permitiu perceber a capacidade criativa que, de maneira diversificada mas ampla, está presente também nos indivíduos, independentemente da escolaridade. Não apenas a capacidade de racionalizar sobre seus atividades produtivas, as diversas maneiras de obter recursos vitais e resolver problemas de trabalho, mas como a competência em racionalizar sobre questões mais complexas.

Como aqueles conceitos sobre o bem e o mal, a vida e a morte, sobre ética e moral, como crenças em deuses ou entidades, valores políticos e tantas outras coisas. Somemos a estas capacidades e competências, dos indivíduos das periferias, a habilidade de questionarem os discursos religiosos, aqueles que querem determinar maneiras corretas e boas que uniformizam as condutas: sobre sexo, lazer, vestimenta, festividades, esporte, etc. Estes indivíduos parecem preferir a liberdade de autodeterminarem suas maneiras e condutas, colocando-se na periferia das religiões. Indivíduos que estão nas periferias urbanas se autodeterminam, usando sua liberdade, periferia religiosa.

A maioria destes indivíduos, que podemos aqui chamar de periferia da periferia, mantém algumas crenças religiosas, mas atrelam a ela, em larga medida, uma visão pragmática da vida. Acreditam num deus bom, fazem suas rezas e orações, fazem leituras de textos religiosos e sagrados, frequentam vez ou outra espaços de culto, mas não esperam nos deuses soluções para seus problemas. Tampouco esperam no Estado tais soluções. Quando um parente está doente, levam-no primeiramente ao hospital, e se se lembrarem, depois fazem as rezas ou orações. Quando estão sem emprego ou com necessidades, buscam apoio prioritário nas redes de amigos. Quando estão sem moradia, podem promover invasões e mutirões. Quando estão sem energia elétrica, fazem puxadinhos.

São indivíduos no limiar das crenças, no limiar da Cidade dos homens e da Cidade de Deus. São indivíduos que mantêm relações precárias com as religiões e com o Estado. Contudo, não são indivíduos passivos, antes, criativos e ativos, que estão buscando reelaborações constantes de suas crenças, fortemente baseados em amizades.

Mais do que dizer aquilo que estes indivíduos das periferias das periferias são, o que procuramos relatar acima é o resultado preliminar de conversas que mantivemos com pessoas com esta autodenominação, sem religião, e que são das periferias da cidade de São Paulo. São conversas preliminares que pretendem em nada dizer o que são os sem religião das periferias, e muito a ouvir o que tais indivíduos nos tem a relatar de si mesmos.

Pesquisa esta que tem a intensão de mostrar a capacidade criativa destes indivíduos diante da dupla precariedade em que estão e como elaboram suas crenças, tendo em vista o afastamento das religiosas como valores e crenças que tudo buscava explicar. Ainda mais do que relatar tais conversas, estamos convidando indivíduos sem religião das periferias a uma conversa que permita ao pesquisador a ampliação do conhecimento sobre os sem religião nas periferias e ofereça aos indivíduos um diálogo que mostre às elites acadêmicas e políticas a criatividade periférica no Brasil.

 

*Marcos Nicolini é Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Doutorando em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Metodista de São Paulo e colaborador do Grupo de Estudo de Religião e Periferia na América Latina (REPAL)

 

PRÓXIMA REPORTAGEM: Na periferia da periferia, sem deus no coração

 

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