Por Isabela do Carmo. Edição: Hysa Conrado.

Maria Quitéria dos Santos./Crédito: Isabela do Carmo.
Às 3h30 da madrugada, Maria Quitéria dos Santos, 52 anos, já está de pé na cozinha de sua casa em Heliópolis, na Zona Sul de São Paulo (SP). Entre panelas e formas, prepara os salgados e bolos que venderá ao longo do dia em sua barraca na esquina da Estrada das Lágrimas, uma das principais vias da favela. Às 5h30, ela abre o ponto e só retorna para casa por volta das 16h30.
Mas o trabalho não acaba aí: ela ainda precisa preparar os alimentos do dia seguinte. A empreendedora dorme por volta das 23h, em média quatro horas por noite.
“É uma luta diária, mas é a minha luta”, resume Maria Quitéria, que deixou a cidade de São Miguel dos Campos, em Alagoas, há mais de 30 anos e há quatro encontrou na venda de alimentos a forma de conquistar a autonomia.
Antes, trabalhava como faxineira por um salário de R$ 1, 5 mil. “O dinheiro não dava pra nada. As meninas [colegas de trabalho] falavam que eu tinha talento e podia fazer algo melhor. Resolvi tentar [empreender] e aqui estou”, conta.
Hoje, ela fatura no máximo R$ 100 por dia – isso quando o movimento ajuda. Grande parte dessa renda vai direto para o supermercado, mas, no fim do mês, as contas não fecham.
“Só em compras do meu comércio gasto de R$ 4 mil a R$ 5 mil por mês. Fora a comida de casa. O que mais pesa é a alimentação. É tudo muito caro”, desabafa.
Na ponta do lápis

Crédito: Isabela do Carmo.
Para conseguir se manter e comprar itens pessoais e de mercado, Maria Quitéria soma sua renda à do marido, que é pedreiro e recebe por demanda. A empreendedora de Heliópolis explica que, se trabalhar o mês inteiro e vender em média R$ 100 por dia, consegue reunir cerca de R$ 3 mil.
Mas desse valor, aproximadamente 20% vai para o pagamento de impostos indiretos, cerca de R$ 600 do que arrecada, segundo a calculadora “O Valor do Seu Imposto”, elaborada pela Oxfam Brasil.
Essa quantia poderia ser usada para reforçar o estoque, melhorar a estrutura de trabalho ou mesmo garantir mais segurança alimentar para sua família. Maria Quitéria integra a parcela da população que vive com até dois salários mínimos mensais. Para ela, cada centavo faz diferença.
De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o rendimento domiciliar per capita no Brasil foi de R$ 2.069 em 2024 – valor calculado como a razão entre o total dos rendimentos domiciliares e o total dos moradores.
A realidade de Maria Quitéria, que sustenta o lar com o marido pedreiro e depende da renda instável do comércio informal, mostra como esse número médio está distante da vida da maioria das famílias periféricas.
A ida ao mercado
Em um atacado da região, Maria Quitéria atravessa os corredores com uma lista extensa de compras: farinha, óleo, margarina, leite, ovos, café, açúcar – os produtos são insumos do seu trabalho, mas também representam parte da sua sobrevivência.
Ela é chefe de família, mora com o marido e o filho adolescente, e explica que precisa priorizar as compras do próprio negócio para manter a engrenagem do trabalho funcionando. Ressalta, no entanto, que não é fácil deixar o equivalente a mais de um salário mínimo, todos os meses, na boca do caixa do supermercado.
- Crédito: Isabela do Carmo.
- Crédito: Isabela do Carmo.
“Os preços estão sempre subindo, um mês o café dispara, no outro é o óleo. Nunca fica barato. Já cheguei a pagar R$ 40 em um pacote de café”, lamenta, já que o carro-chefe de vendas continua sendo o tradicional café preto.
Camila Oliveira, tributarista e professora da Trevisan Escola de Negócios, explica que, em média, 30% a 35% do valor final dos itens comprados no supermercado correspondem a tributos embutidos nos preços.
“Como todos pagam a mesma alíquota no supermercado, uma família de baixa renda destina maior percentual da sua renda a impostos do que uma família rica”, explica.
Segundo a especialista, em itens essenciais como arroz, feijão, óleo e carne, mesmo com alíquotas reduzidas, esse impacto é ainda mais perceptível no orçamento das famílias.
Sistema regressivo e desigualdade
No Brasil, a concentração de renda e o desenho do sistema tributário aprofundam desigualdades históricas. Segundo o estudo “Arqueologia da Regressividade Tributária”, da Oxfam Brasil, divulgado em julho deste ano, apenas 0,15% mais rico da população concentra R$ 1,1 trilhão em renda, mais do que a metade mais pobre do país reunida.
O problema se agrava porque o sistema é regressivo: os mais pobres chegam a pagar três vezes mais impostos, proporcionalmente, do que os mais ricos.
O peso é ainda maior quando se observa o recorte de raça e gênero. Mulheres negras, como Maria Quitéria, são maioria entre as trabalhadoras informais e recebem menos do que homens brancos em empregos formais. Com renda menor e dependentes quase exclusivamente do consumo, elas acabam expostas a uma tributação indireta mais pesada.
- Crédito: Isabela do Carmo.
- Maria Quitéria dos Santos./Crédito: Isabela do Carmo.
Dados da Oxfam mostram que, enquanto os 0,1% mais ricos destinam apenas 10% da renda a impostos, os 10% mais pobres comprometem 32%.
Entre as famílias chefiadas por pessoas negras, a carga indireta é ainda maior: 10,8% da renda vai para tributos embutidos no consumo, contra 9,7% nas famílias chefiadas por pessoas brancas.
Sendo assim, em média, 70% da renda de uma pessoa pobre é gasta em bens e serviços. Proporcionalmente, ela sempre pagará mais impostos do que os mais ricos.
Enquanto países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) tributam mais renda e patrimônio, o Brasil se apoia sobretudo em impostos sobre consumo.
Essa estrutura, alerta o relatório, não apenas concentra renda, como também perpetua desigualdades raciais: a elite econômica é formada majoritariamente por homens brancos (81%), enquanto mulheres negras estão à frente de 65% dos lares mais pobres do país.
A tributarista Camila Oliveira ressalta que o sistema tributário atual promove a manutenção da desigualdade social.
“Ele cobra proporcionalmente mais dos pobres. Como mulheres e pessoas negras estão em maior número nas camadas de baixa renda, acabam sendo mais impactadas, perpetuando desigualdades históricas”, destaca.
Além disso, ela reforça que mulheres negras em trabalhos informais formam o grupo que mais sofrem com o peso dos tributos.
“Como recebem menos e na informalidade, [mulheres negras] têm menos acesso a benefícios trabalhistas e dependem mais do consumo básico. A tributação indireta pesa muito mais no orçamento delas”, explica a especialista.
Justiça Tributária na mão do Congresso
O tema está no centro do debate no Congresso Nacional. O governo tenta avançar com o Projeto de Lei 1087/2025, sob a relatoria do deputado Arthur Lira (PP-AL), que prevê isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil mensais e a criação de uma alíquota mínima de 10% para rendas acima de R$ 50 mil por mês.
Entre as propostas em discussão estão:
- Isenção de imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil;
- Criação de uma cesta básica nacional sem impostos;
- Cashback tributário, que devolveria parte do imposto pago por famílias de baixa renda.

Crédito: Isabela do Carmo.
Na prática, essas medidas poderiam alterar de forma imediata a vida de trabalhadoras como Maria Quitéria.
Segundo a tributarista, se houver a isenção em itens básicos, o impacto seria o alívio imediato seria no orçamento das mães solo.
“Gastos com alimentação representam a maior parte da renda dessas famílias. A retirada de tributos em produtos da cesta básica, por exemplo, poderia significar mais comida na mesa e maior segurança alimentar”, explica.
A empreendedora, que todos os dias empurra sua banca carregada de salgados e bolos, traduz em poucas palavras o que especialistas chamam de justiça tributária: “Quem tem mais pode pagar mais. Quem tem menos não deve sofrer tanto.”
Na prática, conforme destaca a tributarista, é garantido que a trabalhadora tenha acesso a bens essenciais, como alimentação, transporte e saúde, sem que a carga tributária comprometa grande parte do seu salário.
Enquanto as mudanças não chegam, Maria Quitéria segue na batalha diária para equilibrar contas, sustentar o negócio e alimentar sua família.
Esta reportagem foi produzida com apoio do Território da Notícia como parte da campanha Justiça Tributária, Já.