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Crédito: Christiane Evangelista
Como representar um território? Como grafar um espaço no tempo? Creio que uma das grandes contribuições da cena teatral periférica para as artes sejam caminhos para responder a essas perguntas.
Desta vez a Lupa pousou em uma laje em Parelheiros, onde dois cavalos rondavam um círculo de madeira, uma rosa dos ventos.
A laje, na real, é também um espaço cultural chamado Chão de Teto do Núcleo Parelha, e os cavalos Parelheiros e Santa Cruz são os personagens que atravessaram a história do surgimento do maior distrito da cidade de São Paulo, localizado na Zona Sul. Eles são representados pelas atrizes Dionísia Gonçalves e Maria José Alves.
Nesse deslocamento poético conduzido pelo espetáculo “Parelha – Um olhar sobre a realidade”, os cavalos simbolizam o próprio território: Santa Cruz (vulgo cavalo Pangaré), o mais velho, representa o primeiro nome que o bairro teve, e Parelheiros (vulgo cavalo Doido), o mais novo, nascido do próprio irmão.
Ambos estão com antolhos nos olhos – aquele assessório que os impede de olhar para os lados e os força a mirar para a frente, em um trote cansativo sempre a perseguir uma ideia de progresso por meio de um trabalho árduo: andar em parelha.
Um dos caminhos que a peça propõe para a representação desse lado da cidade é uma ligação profunda do próprio território com seus habitantes, nos provocando a pensar na criação de um bairro amalgamado à vida das pessoas que o criam.
Quando as atrizes tiram os antolhos que impedem os cavalos de verem ao redor, elas se tornam as narradoras da história dos equinos-territórios e de seu galope centenário.
A laje também é território
- Crédito: Christiane Evangelista
- Crédito: Christiane Evangelista
Ao mesmo tempo colada à imagem das narradoras, estão as moradoras da laje em que pisamos, que conversam com a vizinha do lado só pelos gritos, gesto tão comum em vizinhanças periféricas.
Essa relação também aparece quando elas falam da torre de comunicação que fica atrás do espaço, ou dos muros e árvores que crescem ao redor; ou quando apontam para as moradias e falam dessas casas inacabadas que não param de nascer: “as casas por aqui engravidam e parem outras” – refletem.
E, da laje em que a peça é encenada, é possível ver essa constelação de tijolos laranjas, telhados, janelas, portas, sonhos, subjetividades, cansaços e histórias que constroem uma paisagem física, social e afetiva como a de um bairro periférico como Parelheiros.
A dramaturgia, que é uma colaboração do grupo com a escritora e dramaturga Cristiane Sobral, está cheia de pontos luminosos como esses, que nos fazem embarcar rumo à uma poética que humaniza e complexifica a periferia.

Crédito: Christiane Evangelista
A sonoridade do espetáculo é um destaque à parte: ela é toda composta por objetos que são vistos usualmente em lajes e em construções inacabadas, como serrotes, latas de tinta e bacias. Eles se tornam instrumentos de corda e percussão, que compõem uma trilha experimental e muito assertiva para a peça.
Para além disso, há de se ressaltar o domínio técnico de corpo e voz das atrizes, que trazem marcas muito fortes de manifestações populares como o Cavalo Marinho. As intérpretes de Libras Nzambiapongo e Tamy Guimarães também elevam a dimensão do espetáculo.
Quase no final da peça os cavalos decidem se separar: o mais velho, Santa Cruz, quer continuar seu trabalho interminável de seguir em frente, mas Parelheiros decide romper essa lógica e seguir sozinho, sem estar à sombra do irmão mais velho, criado ao redor de uma cidade para abastecê-la.
Negar seguir. Parar. Olhar ao redor. A laje, o bairro, a vida. Como grafar um espaço no tempo?
Me parece que o Núcleo Parelha se estabelece como um importante grupo que ao longo de sua trajetória (que eu espero que seja duradoura e que continue frutífera), trará mais e mais caminhos para pensarmos isso.
Um grupo de teatro ligado a uma parte da cidade que não se vê representada nas artes pode ser uma chave para pensar em como nós, pessoas periféricas, narramos nossa história.
Avante, Núcleo Parelha, fazendo cavalos dançarem em lajes, sonhando chãos de teto e propondo um convite: tirar os antolhos e respirar.
Serviço
O espetáculo segue em cartaz até 14 de dezembro, com apresentações em diversos espaços no bairro, siga a página @parelhaprojeto para mais informações.
Ficha Técnica:
Concepção, Atuação e Música em Cena: Dionísia Gonçalves e Maria José Alves
Direção: Juliana Pardo e Alício Amaral (Cia Mundu Rodá)
Dramaturgia: Cristiane Sobral e Núcleo PARELHA
Direção Musical: Gregory Slivar
Trilha Sonora e Composição: Dionísia Gonçalves
Preparação Vocal: Dionísia Gonçalves
Construção Baixo-Cello de Lata: Gregory Slivar e Wanderley Wagner
Construção Flauta PVC: Júlio César
Preparação Corporal: Juliana Pardo e Alício Amaral
Criação e Operação de Luz: Kenny Rogers
Assistente de Iluminação: Bianca Pereira
Criação e Conceito de Cenário: Wanderley Wagner e Núcleo PARELHA
Concepção de Figurino: Macarena Rozic
Hairstyle: Mestiça
Fotografia Laje: Kenny Rogers
Fotografia Programa e Redes Sociais: Noelia Nájera
Doc-Filme PARELHA 2023 – Direção Audiovisual: Flavio Barollo
Designer Gráfico: Adi Alves
Social Media: Cristhiane Evangelista
Cenotécnia e Som / Consultoria Musical: Gilson Lande
Consertos e Manutenção Técnica: Luthieria Fênix SG
Intérpretes de Libras: Nzambiapongo e Tamy Guimarães
Assessoria de Imprensa: Pombo Correio
Produção Geral: Núcleo PARELHA
Produção de Campo: Silmara Garcia
Assessoria Contábil: Juliana Santana






1 Comentário
A peça é de uma preciosidade absurda! Tudo impecável o coletivo ainda ficou sentido, pois no dia estava chovendo, e a peça foi realizada na laje,mas com Lona e a vivência foi impecável.
É bom quando se tem um olhar de fora, exaltando a beleza e encanto da peça.