Por Igor Ojeda e Tatiana Merlino (texto); Beatriz Macruz e Caio Castor (vídeo e foto), no site Repórter Brasil
– Você pode explicar o que esse local significa para vocês?
O cacique Karaí Mirim Vitor Fernandes, da aldeia Tekoa Pyau, da Terra Indígena Jaraguá, na Zona Norte de São Paulo, responde. Em guarani, sua língua. Os brancos não entendem. Então, diz, em português: “Respondi na minha língua porque aqui é um local sagrado”.
Chão de terra batida, pouca luz. De um lado, bancos de madeira, dois violões encostados na parede e uma pequena armação feita do mesmo material fincada no chão, servindo como uma espécie de altar. Do outro, mais bancos e uma fogueira cercada por cachorros que se esquentam na manhã fria e chuvosa. Uma senhora de seus setenta anos fuma um cachimbo indígena. Ao lado, crianças brincam. Estamos na casa de reza da aldeia.
É nesse local, como explica o cacique no vídeo abaixo, que a comunidade se reúne todas as noites para rezar, onde as crianças recebem seus ensinamentos religiosos. É, também, onde as decisões importantes da comunidade são tomadas. Lá, por exemplo, discute-se sobre a campanha para pressionar o governo federal a demarcar os territórios guarani localizados dentro da capital paulista.
Sim, os guarani de São Paulo estão em campanha. Querem que o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo assine as Portarias Declaratórias das Terras Indígenas Jaraguá e Tenondé Porã – esta última localizada em Parelheiros, no extremo sul do município – para que se dê início ao processo de desintrusão das áreas e indenização dos não índios. Os guarani exigem espaço suficiente para viverem bem, de acordo com seu modo de vida, e de maneira que possam preservar suas tradições e cultura. Com a área reservada a eles atualmente, isso não é possível, dizem. “Sem demarcação, sentimos como se estivéssemos presos numa gaiola”, ilustra o cacique Karaí Mirim, de 33 anos.
A Terra Indígena Jaraguá, por exemplo, é a menor do país. Em 1,7 hectare de terra, área equivalente a menos de dois campos de futebol, vivem cerca de 700 pessoas, distribuídas em duas aldeias – com a demarcação, esse território ficará com 532 hectares. “O homem branco, quando passa aqui perto, diz que parece uma favela, mas não é. É uma aldeia indígena”, explica Nelson Soares, vice-cacique da Tekoa Pyau. “Se tivéssemos condições de ter uma área mais afastada, não seria assim, seria o suficiente para vivermos bem.” Segundo ele, faltam médicos e sobram doenças causadas pela poluição, falta de saneamento e pela quantidade de cachorros abandonados que circulam pelo local. “As crianças pegam sarna, tem diarreia, vômito.” Outro problema é a segurança das crianças, que, por conta da falta de espaço, frequentemente vão brincar próximo à estrada, aumentando o risco de acidentes.
A aldeia é cercada por muros. Seus limites são ruas, o Parque Estadual do Jaraguá e a Rodovia dos Bandeirantes, que liga São Paulo ao interior do estado. As casas são simples e feitas de madeira. Poucas são de alvenaria. As ruas são de terra. Na entrada, caçambas cheias de lixo amontoam-se pela calçada. Quando chove, como no dia em que a reportagem visitou a aldeia, a situação de precariedade em que vivem os indígenas piora, relatam seus habitantes. A terra vira barro e a água invade as casas.
Nesses dias, dona Jandira, por exemplo, não pode cozinhar. Ela não tem fogão, e costuma preparar os alimentos no fogo que acende do lado de fora de sua casa. Com chuva, não consegue fazer isso. Precisa esperar para cozinhar na creche local. A mulher de 47 anos se aperta com o marido e três filhos em dois cômodos. No quarto, há três camas enfileiradas, encostadas à parede, roupas penduradas, televisão, utensílios de cozinha e uma sacola cheia de peças de artesanato que ela tenta vender, nem sempre com sucesso. “Se tivéssemos mais terras, poderíamos construir casas melhores. Poderíamos plantar. Nós precisamos de mais terras”, resume.
Durante a noite, muitos medos prejudicam seu sono. Medo de que o branco queime a casa dos guarani, como já aconteceu com parentes de outras aldeias. Medo de que as crianças, que, por viverem em um território tão apertado e, por isso, brincarem na rua, sejam alvo de algum tipo de violência. Como aconteceu há um ano com um sobrinho de três anos de idade numa aldeia no Paraná, desaparecido e encontrado dias depois com o corpo esquartejado. “Quando fecho os olhos, parece que estou ouvindo alguém gritar: ‘Jandira, levanta, mataram a criança!’.” Nessas horas, acende um cachimbo e pede ajuda a Nhanderu, o deus da criação para os guarani.
Neusa Poty Quadro, de 26 anos, é uma das lideranças da aldeia. Nascida no Paraná, mora há três anos em São Paulo. Magra, pequena e de fala baixa, ela confessa que muitas vezes, durante a noite, várias perguntas insistem em acordá-la. “Fico pensando em por que os brancos tiram nossos direitos. Será que fizemos muito mal para eles? Erramos tanto para que eles façam de tudo para tirar nossos direitos? Sei que não fizemos nada de mal. Não fazemos nada para tirar o direito de ninguém. Me pergunto isso porque nunca ouvi uma história de que os índios fizeram um massacre contra os brancos”, lamenta.
Apesar de viverem em um território tão apertado e colado à área urbana da cidade, a cultura guarani tem sido mantida. Mas com dificuldades. Na escola da aldeia, as crianças aprendem os costumes, a língua e a tradição de seu povo. Porém, quando saem de lá, não têm onde colocar em prática os ensinamentos. “Nosso livro didático era a natureza”, diz Alísio Gabriel Tupã Mirim, outra liderança (veja vídeo abaixo).
Para piorar a situação, desde 2002 os habitantes da aldeia Tekoa Pyau estão ameaçados por uma reintegração de posse, reclamada por duas pessoas que alegam ser proprietárias das terras ocupadas pelos indígenas, apesar de a área ter sido reconhecida como território guarani pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
Segundo informações do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em 2013 foi emitida uma decisão de reintegração de posse na primeira instância da Justiça Federal de São Paulo. Embora a determinação esteja suspensa, até o julgamento das apelações apresentadas pela União e pelo Ministério Público Federal é possível que haja alguma modificação pelo Tribunal Regional Federal.
De acordo com o artigo 231 da Constituição Federal, os atos administrativos que envolvem a posse de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas são considerados nulos e extintos. Assim, a emissão da Portaria Declaratória da Terra Indígena Jaraguá pelo Ministro da Justiça anularia o pedido de reintegração.
Em resposta à solicitação da reportagem, a assessoria de imprensa do Ministério da Justiça afirmou que o processo relativo à Terra Indígena Tenondé Porã “encontra-se atualmente em resposta técnica a diligência requerida pelo Ministério da Justiça. Prazo de atendimento da diligência pela Funai: fim de abril. Posteriormente o processo será remetido ao Ministério da Justiça para as devidas análises nos termos do art. 2º, §10 do Decreto n.º 1775/96”. Segundo esse decreto, cabe ao ministro da Justiça publicar uma portaria declaratória que permite iniciar o processo de indenização dos ocupantes não indígenas para devolver as áreas ao usufruto exclusivo das comunidades indígenas.
Em relação à Terra Indígena Jaraguá, a assessoria do MJ disse que “atualmente encontra-se na etapa do contraditório administrativo, sendo respondida tecnicamente as contestações apresentadas em face do procedimento de identificação da referida TI, nos termos do Decreto n.º 1775/96”. Ou seja, o processo seria enviado ao Ministério em seguida.
A campanha pela demarcação das terras indígenas em São Paulo, chamada de “Resistência Guarani SP”, teve início na quarta-feira, 16, quando cerca de 50 índios ocuparam o interior do Museu Anchieta, localizado dentro do Pátio do Colégio, no Centro da cidade, onde passaram a noite. O objetivo era permanecer no local até o evento oficial de lançamento da campanha, programado para ter início às 16 horas desta quinta-feira, 17, no largo em frente (leia aqui a cobertura completa da Repórter Brasil sobre a ocupação).
Para divulgar suas reivindicações, os indígenas publicaram um manifesto em duas versões: uma em texto e outra em vídeo, em sua própria língua (assista ao vídeo abaixo). Além disso, já circula na internet uma petição a ser enviada ao ministro da Justiça.
Dentro do museu, os índios dançaram, cantaram e tocaram instrumentos musicais, sob os olhares de funcionários e visitantes não índios. Um pouco antes do fechamento do prédio, distribuíram panfletos explicando os motivos da ocupação. De acordo com o comunicado divulgado por eles à imprensa, “interromper temporariamente as atividades do Museu, que celebra o local de fundação da cidade e início da colonização, foi a forma encontrada pelos habitantes originários de São Paulo para cobrar do Ministério da Justiça a emissão das Portarias Declaratórias que garantem a demarcação das Terras Indígenas Tenondé Porã e Jaraguá, já reconhecidas pela Funai”. Os guarani se concentraram na noite do dia 15 na Aldeia Tenondé Porá, onde realizaram um ritual de reza (veja no vídeo abaixo). De lá, partiram em micro-ônibus no início da tarde do dia 16 em direção à região central da cidade.
A Terra Indígena Tenondé Porã, no extremo sul de São Paulo, abriga cerca de 1.400 índios, em quatro aldeias, duas em Parelheiros, uma em Marsilac e outra no município de São Bernardo do Campo. Hoje, a Funai reconhece que esse território deveria abranger 16 mil hectares.
Em Parelheiros, também é difícil manter a sobrevivência e a tradição guarani. Durante a ocupação do Patio do Colégio, enquanto fumava um cachimbo, Jera Guarani contou que a situação é grave. “A base da sustentação da nossa cultura é a oralidade.” Os ensinamentos são transmitidos, mas as condições das aldeias não permitem que sejam aplicados. “Temos problemas para plantar mandioca e milho, que são a base da nossa alimentação. Também não conseguimos caçar e pescar. Então, o que temos de comida vem do mercado, que são alimentos não saudáveis, com agrotóxicos, o que desestrutura a saúde do guarani”, explica. Vivendo em áreas muito pequenas, os mais velhos sofrem com tristeza e depressão. “Há casos de dependência alcoólica, fome, desestabilização familiar”, enumerou.
Sentada ao seu lado, Aramirim Guarani explica o que significa para os guarani ocuparem o Pátio do Colégio 460 anos depois da fundação de São Paulo. “Invadiram nosso espaço. Temos todo o direito de estar aqui, neste local onde morreram muitos guarani. Nestas pedras há o sangue do nosso povo.
Redação PEM