Reportagem: Thiago Borges. Foto em destaque: Vitori Jumapili
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa 32 anos nesta quarta-feira (13/7), determina que crianças e adolescentes são prioridade absoluta da sociedade em geral e, principalmente, do poder público, que deve proteger e garantir seus direitos. Porém, 2 anos e meio depois do início da pandemia de coronavírus, pouco se sabe da situação de quem perdeu pai, mãe ou responsável para covid-19, que já matou mais de 674 mil pessoas no Brasil.
Para o historiador Danilo César, que coordena a Rede de Apoio às Famílias de Vítimas da Covid-19, essa demora aumenta a vulnerabilidade de crianças e adolescentes e pode comprometer o desenvolvimento de toda uma geração – e afeta especialmente famílias negras, indígenas e pobres no campo e nas periferias das grandes cidades.
“Isso tem a ver com o luto politraumático que estamos vivendo. Tem aquela acolhida emergencial que é dada pela comunidade, pelo novo tutor, muitas vezes o avô, mas não tem sido garantido o acesso a direitos a essas crianças”, conta ele, que representa a Rede na Coalizão Nacional pelos Direitos das Crianças, Adolescentes e Jovens sob Orfandade Causada Pela Covid-19 no Brasil.
Criada no final de 2020, a articulação reúne mais de 30 movimentos e organizações da sociedade civil com objetivo de pensar e incidir em políticas públicas para a orfandade. Porém, o “apagão” de informações precisas dificulta a elaboração dessas propostas. A expectativa da Coalizão é ter dados mais precisos com a realização do Censo do IBGE, atrasado em 2 anos.
Procurado pela Periferia em Movimento, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) do governo liderado por Jair Bolsonaro (PL) informou que não tem dados oficiais sobre orfandade. Segundo o Ministério, essas informações teriam sido solicitadas sem êxito a outros órgãos do governo, como (Instituto de Pesquisa Econômica (IPEA), Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e Ministério da Saúde. A pasta diz ainda que a falta de registros dificulta a exatidão estatística.
Enquanto isso, em novembro do ano passado o Imperial College de Londres (na Inglaterra) projetou que o País tinha uma legião de 282 mil crianças e adolescentes em orfandade por conta da doença – atrás apenas do México, até então. Mas a pesquisa alerta para a possibilidade de subnotificação.
Já a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) cruzou dados de certidões de óbitos e registros de nascimento em cartórios, chegando a 12.211 crianças órfãs entre 0 a 6 anos – o cálculo foi possível porque, desde 2015, o CPF é incluído imediatamente na certidão de nascimento.
“Precisamos formular políticas públicas que deem conta do tamanho do problema, garantido apoio financeiro, mas também suporte psicossocial, constituição da memória, apoio jurídico para refazer um conjunto de dimensões que foram afetadas e garantir mínimo de condições para [crianças e adolescentes] seguirem”, explica Danilo.
O que tem sido feito
O Estado do Maranhão foi o primeiro a desenvolver alguma política pública local, incluindo transferência de renda em R$ 500 mensais até a maioridade. Aprovada em novembro do ano passado, o programa tem servido de modelo para outros estados da região Nordeste. Propostas também estão em discussão em outras partes do País, como Goiás e Distrito Federal.
O Governo do Estado de São Paulo, o mais rico e populoso da federação, lançou em julho do ano passado o SP Acolhe. Segundo a assessoria de imprensa, o programa da Secretaria de Desenvolvimento Social transferiu R$ 57,7 milhões para 17.182 famílias que tiveram ao menos um óbito por covid-19 no período. O benefício consiste no pagamento de 6 parcelas de R$ 300 mensais. Para receber o benefício, a pessoa precisa ser inscrita no Cadastro Único (CadÚnico) e ter renda familiar de até 3 salários mínimos por pessoa. Não há um recorte específico para crianças e adolescentes em orfandade.
Já no município de São Paulo, não há programa específico para atender crianças e adolescentes nessa situação. A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) da Prefeitura da cidade de São Paulo limitou-se a dizer que todos os benefícios pagos na cidade são organizados a partir dos critérios do CadÚnico, que tem os Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) como porta de entrada.
Tanto o Governo do Estado paulista quanto a Prefeitura paulistana não têm um mapeamento. Segundo fonte da Periferia em Movimento no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), o debate sobre a orfandade provocada pela pandemia foi boicotado no órgão, que reúne representantes da administração municipal e da sociedade civil para decidir sobre políticas para esse na cidade.
De toda forma, especialistas dizem que para garantir a universalidade a política deveria ser apresentada a partir do governo federal.
O MMFDH informa que está prestes a lançar um material sobre a percepção de crianças e adolescentes sobre o período de isolamento social, sem especificar data. Também citou o programa Auxílio Brasil como principal mecanismo de transferência de renda no País, com atendimento a cerca de 18 milhões de famílias, sem prever algo específico para aquelas com crianças e adolescentes em orfandade.
E o Ministério da Cidadania, que é responsável pelo Auxílio Brasil e pela gestão do CadÚnico em âmbito nacional, limitou a resposta ao Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora, uma das modalidades de serviços de acolhimento e proteção integral para crianças e adolescentes que compõem o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Nesse caso, crianças e adolescentes, inclusive em orfandade, ficam nas residências das famílias acolhedoras até poderem retornar de forma segura à sua família de origem ou encaminhadas para adoção.
Para Danilo César, esse tipo de medida é “neocatequizante” e criminaliza pessoas pobres e periféricas, uma vez que tira o foco do convívio e cuidados pela família extensa – que pode incluir avós, tios, tias, etc.
Lacuna
Assim como outros problemas, a pandemia da covid-19 evidenciou e potencializou uma lacuna que já existia. “[Hoje] Não há política nacional bem estruturada de localização, cadastramento e efetiva garantia da proteção integral das crianças, adolescentes e jovens de maneira geral”, aponta Danilo.
Por isso, a Coalizão entende que é preciso criar uma política para orfandade de forma universal, voltada não só a descendentes de vítimas da covid-19 como também de qualquer outra situação em que ficam sem assistência, como vítimas de feminicídio, acidentes ou catástrofes ambientais, por exemplo.
Algumas propostas estão em discussão no Congresso Nacional.
A Comissão de Assuntos Econômicos do Senado discute a criação do Fundo de Amparo às Crianças Órfãs (Facor) e o Programa de Amparo às Crianças Órfãs (Procor), proposta pela senadora Nilda Gondim (MDB-PB) no ano passado. O projeto de lei prevê o repasse de dinheiro para famílias que vivam sob o mesmo teto que crianças e adolescentes em orfandade.
Nessa proposta, cerca de 70% dos recursos do fundo seriam destinados para o pagamento mensal à família, cuja renda mensal por pessoa da casa seja inferior a 25% do salário mínimo. Os 30% restantes do fundo seriam destinados a organizações sociais que prestem assistência a essas famílias, como ações educativas, recreativas, psicoterapêuticas, profissionalizantes e de acolhimento.
Já na Câmara dos Deputados, também tramita desde o ano passado o projeto de lei do deputado Alexandre Padilha (PT-SP) que institui a política de atenção integral às vítimas e aos familiares de vítimas da pandemia de Covid-19. O objetivo é assegurar a recuperação de pacientes que tenham ficado com sequelas físicas e amenizar os impactos sociais da pandemia.
Entre os itens, o projeto lei prevê proteção especial para as crianças e os adolescentes órfãos da pandemia. Se aprovado o PL, as ações para este público devem assegurar o acompanhamento psicossocial e de saúde adequado, além de medidas de proteção social e de fortalecimento de vínculos.
Para Danilo César, a questão financeira deve ajudar, em especial famílias mais pobres. “Mas todas as dimensões precisavam ser olhadas pelo estado, que foi quem promoveu esse genocídio”, diz ele, que critica a letargia e omissão do governo federal, que “está empenhado em esconder seus mortos”.
O ativista diz que a Coalizão articula a inclusão das propostas sobre orfandade no programa de governo do ex-Presidente e pré-candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A articulação é feita junto ao Secretário Nacional de Direitos Humanos do partido, ex-deputado estadual Renato Simões, e à deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), que trabalha na consolidação do texto.
“Precisa-se pautar essa questão das vítimas da covid. É um tema indigesto. As pessoas estão legitimamente querendo virar a página, mas aprendemos na história do País que não se vira página nenhuma sem bem nos havermos com as questões mais sérias do passado e ainda prementes no presente, para realmente superá-las”, completa ele.
Thiago Borges, Vitori Jumapili