A casa no Jardim Inamar é uma verdadeira galeria de arte. Aqui, estão pinturas com Anastácia, Dandara dos Palmares, Marielle Franco, Malcom X, Nelson Mandela e outras personalidades históricas do povo negro no Brasil e no mundo.
As obras foram produzidas por outra personalidade: Ordalina Cândido.
A artista plástica e arte-educadora que vive em Diadema, na região metropolitana de São Paulo, segue na ativa aos 79 anos de idade. São mais de seis décadas de dedicação à arte.
“Eu sou uma pessoa muito feliz [como artista]. Sinto que posso bater minhas asas e ir de um lugar pro outro. Sou feliz porque fiz muitas coisas e posso fazer ainda mais. Isso me enche de felicidade, estar de bem com o povo” – Ordalina Cândido.
A maioria das produções de Ordalina refletem sobre a violência nas favelas, a experiência da mulher negra ao longo da história e personagens tanto masculinos quanto femininos.
Em comum, pessoas que batalharam pela melhoria das condições de vida dos grupos mais vulneráveis, sobretudo do movimento negro e da cultura afro.
Nesse sentido, as obras refletem também parte da história da própria Ordalina.
O encontro com a arte
Natural de Cambará, no Paraná, mas registrada em Salto Grande, em São Paulo, Ordalina perdeu o pai aos 2 anos de idade devido a um surto de febre amarela. Junto à mãe e ao irmão, migrou da zona rural para a cidade em busca de melhores oportunidades de trabalho e estudo.
Ordalina iniciou sua trajetória artística aos 12 anos, no Colégio Imaculada Conceição, um internato no Paraná frequentado pela elite branca da cidade.
Após muita luta de sua mãe, que trabalhava como faxineira no local, Ordalina conseguiu uma bolsa para estudar no colégio.
“Depois de uns 20 dias de insistência, eles falaram: ‘dona Maria, a gente resolveu que a sua filha pode estudar, mas ela tem que estar à altura do povo branco’. Para eles, o negro não tem aquela mesma inteligência que o branco”, conta Ordalina.
No colégio, Ordalina conheceu a arte e se apaixonou.
Dedicada, talentosa e pressionada, a aluna rapidamente se destacou entre a turma, que não encarava as aulas com a mesma seriedade, e foi aconselhada a investir na carreira.
“Enquanto as meninas queriam rasgar a tela e rabiscar, eu fazia aquilo tudo com muito amor. Aí, todo mundo viu que eu tinha aquele talento e passaram a falar pra eu ir pra São Paulo para continuar estudando artes”, relembra.
Apesar da constante violência racial, Ordalina se manteve firme nos estudos pela esperança de um futuro com melhores oportunidades.
Depois de se formar no Ensino Médio, aos 17 anos, ela rumou para São Paulo com o intuito de dar continuidade à paixão.
“Não estudavam negros, mas eu passei a ser ‘branca’ lá, meu apelido era ‘polaca’. Eles faziam de tudo para eu ficar branca. Alisava o cabelo com aquele ferro quente, queimava o couro cabeludo, mas eu fiquei lá. Eu falava assim: ‘saiba sofrer sorrindo para fazer sorrir os que sofrem’. De noite eu podia chorar, mas de dia eu sorria. Eu sempre sonhava que eu era uma princesa, uma rainha, ficava lá fazendo castelos. Estudei e me formei lá, até que minha mãe veio trabalhar em São Paulo no mesmo colégio”, conta.
Raízes em Diadema
No início da década de 1960, Ordalina e sua mãe se mudaram para o Jardim Inamar, em Diadema, onde reside há 65 anos e criou raízes.
Enquanto a mãe trabalhava na unidade do colégio em São Paulo, Ordalina alimentava o sonho de ingressar no Centro Universitário Belas Artes, uma das principais faculdades do nicho no Brasil.
Para complementar a renda e conseguir iniciar o curso, começou a desenvolver trabalhos comunitários – que entraram de vez em sua vida.
“Eu comecei a trabalhar, e a arte ficou um pouco de lado. Foi então que eu comecei a dar aulas em Campos do Jordão para meninos da Febem (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor), atual Fundação CASA (Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente)”, explica.
“Fiquei 10 anos dando essas aulas, mas eram meninos muito difíceis, saídos da rua, que foram abandonados pela mãe e tinham uma resistência muito grande. Eu aprendi a lidar com eles ouvindo o que eles tinham pra dizer, e por 10 anos eu lutei pra que eles pudessem ao menos entender que poderiam ser alguma coisa, independente de ter ou não família”, continua.
Após esse período, ela voltou para São Paulo, mas seguiu longe da universidade para priorizar o trabalho.
Paralelamente, a artista que também tem habilidades como cabeleireira montou um salão para cortar o cabelo de jovens da quebrada de forma voluntária para auxiliar em entrevistas de emprego.
“Ensinei como cortar para algumas pessoas que frequentavam e que hoje cortam cabelo. Até hoje, eles ainda ligam pra mim e falam que eu fiz parte de suas vidas. Eu estava ali tentando fazer com que eles pudessem ser inseridos na sociedade”, conta.
O legado de Ordalina segue vivo graças à Rede Cultural Beija-Flor, organização social de Diadema que mantém o projeto “Ordalinos”, que oferece cursos profissionalizantes de formação de profissionais na área da beleza.
Educando pela arte
No início da década de 1990, além de técnicas de cortes de cabelo, Ordalina também começou a ensinar artes para crianças em situação de rua.
Para cativar participantes, Ordalina pedia que retratassem sua realidade nas obras feitas. A estratégia, que tinha o objetivo de gerar pertencimento e autoestima, deu certo e passou a ser uma das marcas registradas da arte-educadora.
“Foi a melhor coisa. Eu viajei, fui pra alguns países da Ásia e Europa e levei nossas artes para serem vendidas lá, e foi um sucesso. Os meninos pintavam muito mais porque estavam ganhando dinheiro. Quando você olhava para eles já não os enxergava mais como meninos de rua, eles tinham mudado. Alguns hoje vivem de arte. A arte conseguiu transformá-los”, relembra.
A transformação a partir do conhecimento é um valor herdado de sua mãe, dona Maria, que durante a infância da artista em Cambará desenvolvia trabalhos de cuidado com crianças em situação de vulnerabilidade.
“A minha escola é a escola da vida, o que eu aprendo eu dou de volta. As pessoas sempre têm algo de valor para ensinar. Se você passar um pouquinho da sua sabedoria pra alguém, além de essa pessoa crescer, você cresce também”, diz.
Legado
Mãe de quatro filhos e avó de três netos, Ordalina foi casada por mais de 40 anos. Depois da morte do seu ex-marido, que conheceu em Campos do Jordão, se casou novamente com um professor de capoeira.
Hoje, vive com os netos no mesmo bairro em que chegou décadas atrás e quer expandir o alcance de suas obras para retratar o Jardim Inamar de forma digna.
Próxima dos 80 anos de idade, Ordalina continua criando obras de arte, lecionando, e inspirando outras pessoas.
Ela é arte-educadora no Projeto Girassol, organização que atende crianças e jovens de baixa renda em Diadema, onde ensina técnica de pintura para cerca de 40 estudantes.
Ordalina também pinta quadros sob encomenda. Quando a reportagem da Periferia em Movimento visitou sua casa, a artista trabalhava em uma série de 8 quadros representando as praias de Jericoacoara, no Ceará, solicitados por um cliente da Inglaterra.
“Estou tentando viabilizar algumas vendas on-line, pelo Instagram. Eu não sei mexer, mas recebo ajuda. Além disso, eu vendo alguns quadros aqui em casa”, diz.
E ela ainda dá aulas particulares para a terceira idade, para auxiliar essas pessoas a manterem a mente saudável e ativa.
“É pra elas não perderem a sensibilidade de conhecer, de imaginar. A arte é pra todos, ela educa, transforma e modifica as pessoas. A arte cabe desde o menor até o maior. É uma coisa que todo mundo precisa fazer parte na vida”, diz.
Mesmo não tendo cursado a universidade, como planejado, Ordalina conquistou um espaço bastante relevante dentro do mercado da arte. Mais que isso, é uma agente de transformação positiva na vida de centenas de pessoas – o suficiente para garantir sua felicidade.
“É muito gratificante receber esses ‘muito obrigado’ depois de tantos anos. Tudo que eu fiz se resume a esse agradecimento e esse sorriso largo que as pessoas me dão. Parece até que eu ando nas nuvens”, conclui.
Edição: Thiago Borges
André Santos, Thiago Borges