Por André Santos. Edição: Thiago Borges. Artes: Rafael Cristiano
“A maior dificuldade que minha família teve foi para enterrar meu irmão. Foi uma situação que pegou a gente desprevenido, não tínhamos o dinheiro, nem um real na conta, e aí precisamos pedir ajuda para terceiros. Fizemos alguns empréstimos, muitas pessoas ajudaram a gente com o que podiam. Acho que o pior de tudo, além da perda, foi pedir dinheiro porque a gente não tinha pra poder dar um enterro digno para o nosso familiar”.
O desabafo de Jaqueline Aparecida Brito, de 33 anos, é um retrato da transformação que o Serviço Funerário Municipal da maior metrópole do Brasil passa desde a terceirização de seus serviços, em 6 de janeiro de 2023
Com a concessão, prevista para durar por 25 anos, quatro consórcios assumiram a gestão, manutenção, exploração, revitalização e ampliação de 22 cemitérios públicos e do crematório na capital paulista.
Atualmente as empresas responsáveis pelo serviço são: Consolare, Cortel, Grupo Maya e Velar.
“A privatização tornou o luto mais doloroso, porque além de a gente perder uma pessoa que gostamos e vivemos juntos, a gente ainda passa por essa dificuldade para enterrar, da falta de dinheiro… então ficou muito mais difícil. Se a gente tivesse um apoio social da Prefeitura, como antigamente, seria melhor. Quando minha mãe faleceu, a gente teve apoio, a Prefeitura ajudou. Eles doaram caixão, então foi mais fácil e menos doloroso”, conta Jaqueline, que mora na Ocupação Jardim União, no Grajaú (Extremo Sul de São Paulo).
O Sindsep – Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo denuncia que a concessão do Serviço Funerário Municipal, promovida pelo prefeito reeleito Ricardo Nunes (MDB), elevou os preços de sepultamentos em 400%. Os valores de exumações chegaram a números 11 vezes maiores.
Confira a tabela abaixo com o comparativo:
Apesar do aumento, a qualidade do serviço prestado tem deixado a desejar.
“A gente pagou R$ 3.600 na funerária, e eu acho que foi muito dinheiro pra pouco serviço. Faltou dar uma limpada melhor, colocar umas flores mais bonitas, tinha bastante mosquitinho também. Acho que eles deveriam passar algum produto para evitar essa situação pelo valor que foi cobrado”, aponta Jaqueline.
Além da baixa manutenção nos cemitérios e necrotérios administrados pelas empresas concessionárias, a lentidão nos processos legais pioram a situação e promovem descontentamento nas famílias enlutadas, que hoje são tratadas como potenciais clientes dentro desses espaços.
“Eles ganham dinheiro em cima de uma tristeza nossa, a realidade é essa. Fica um monte de funerária em cima da gente para vender os serviços deles, sendo que é uma parte da nossa vida de muita tristeza”, conta Jaqueline.
Seis dias de espera
Sil tem 54 anos, também é moradora do Grajaú e foi mais uma pessoa a passar por situações de descaso durante o processo de sepultamento de um ente querido. A reportagem ocultou detalhes que possam revelar sua identidade.
Ela conta que, entre o falecimento e o enterro de seu marido, passaram-se seis dias. Por isso, protesta contra as dificuldades e demora que foram impostas durante o processo.
“Meu marido veio a óbito no dia 31 de março deste ano e foi sepultado só no sábado, dia 5 de abril. A dificuldade foi desde o começo, quando o corpo saiu do Grajaú e mandaram para o IML da Vila Leopoldina (zona Oeste, pouco menos de 30km de distância), e ficamos lá um dia, uma tarde e uma noite inteira. Tinha uma perita só para mais de seis corpos”, relembra Sil.
Sil classifica o serviço como péssimo, caro e de má qualidade. Ela conta que, além dos custos com caixão, uma coroa de flores das mais baratas chega a custar R$ 400.
Apesar disso, ela conta que conseguiu forças para “se virar” e prestar as últimas homenagens a um ente querido, mesmo diante dessas dificuldades e do sofrimento que toda a situação gerou.
“Essa privatização é uma máfia danada. Fora que quando acaba tudo, lá dentro mesmo do cemitério, ficam pessoas da própria empresa para se aproveitar do momento de fragilidade. Se você quiser colocar uma foto do falecido, em memória, eles não cobram menos que R$ 800. Eu só tenho momentos terríveis desde que meu marido morreu até hoje. Eles não ajudam a gente em nada, não tem benefício de nada, e se a gente procurar eles não dão. É muito triste. A privatização só beneficia mesmo os donos das empresas funerárias. É triste”, desabafa Sil.
Omissão de benefícios
Antes da privatização, a Prefeitura oferecia serviços funerários gratuitos para famílias de baixa renda e pessoas doadoras de órgãos. Após a concessão o cenário se alterou, e além das restrições à gratuidade, os preços médios dos sepultamentos e exumações disparou.
De acordo com levantamento realizado pelo Sindsep, o custo total de um enterro padrão passou de R$ 863 para R$ 3.408,05, enquanto o custo de uma cremação padrão aumentou de R$ 1.126,25 para R$ 5.487,91.
Soma-se isso ao fato de as funerárias por vezes omitirem o direito ao funeral social gratuito, disponível para população de baixa renda mediante o cadastro atualizado no Cadastro Único (CadÚnico).
É o caso de Aline Medeiros dos Santos, de 35 anos. Moradora da Penha, na zona Leste, Aline conta que em nenhum momento foi informada sobre a possibilidade de gratuidade, mesmo que seu pai estivesse com cadastro ativo no CadÚnico por ser beneficiário do Bolsa Família.
Aline conta que os cuidados pela escolha da empresa responsável pelo sepultamento de seu pai ficaram a cargo de sua prima, mas que um primeiro contato com ela foi feito por meio de pessoas que trabalhavam para o Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), que ao retirar o corpo ofereceram seus serviços de sepultamento e alertaram para eventuais golpes que aconteciam em outras funerárias.
“Depois que eles levam o corpo pro SVO tem que esperar a liberação , e quanto mais tempo ele fica no SVO, mais a funerária cobra de embalsamento. No funeral do meu pai eles cobraram R$ 3.250, com velório, caixão e a vela, só que cobraram R$ 1.000 também de embalsamento, porque ele morreu no dia 2 e foi enterrado só no dia 4”, relembra.
Aline avaliou a primeira experiência como positiva, apesar de financeiramente pesada, uma vez que percebeu que houve um cuidado com seu caso. Além do valor desembolsado com o cerimonial, ela e sua família pagam um valor mensal para manutenção do jazigo de seu pai, uma vez que ao visitar o túmulo percebeu que alguns ao redor estavam em más condições devido ao não pagamento dessa taxa.
“Todo mês eu pago R$ 60 para que o túmulo esteja bem cuidado. E eu e minha irmã sempre tentamos ir ao cemitério para ver se está tudo de acordo com o que estamos pagando”, conta.
A surpresa maior, no entanto, veio dois meses depois, quando a tia de Aline também veio a óbito e a mesma funerária que prestou serviços anteriormente passou a cobrar valores exponencialmente maiores de forma arbitrária.
“No da minha tia já estavam cobrando R$ 5.062 pelo funeral. Era a mesma funcionária que prestou serviço pra gente antes, e ela foi super mal educada dessa segunda vez, achei super antiético. A gente sabe que eles ganham comissão”, diz.
Como garantir funeral digno a uma pessoa da família que acabou de falecer?
Sofrimento contínuo
Tatiane Oliveira, de 44 anos, atualmente mora em Jundiaí, cidade na região metropolitana de São Paulo. Mas foi no Grajaú em que nasceu e se criou.
Ela conta que, quando recebeu a notícia da privatização do cemitério, imaginou que o cenário seria de melhoria na qualidade do serviço prestado. Mas que se surpreendeu ao deparar-se com o cemitério do Campo Limpo “abandonado, sujo e sem nenhuma manutenção de jardinagem”.
Tatiane também foi informada que não havia qualquer gratuidade nos serviços devido à privatização quando precisou fazer o processo de exumação do corpo de seu pai, etapa obrigatória a ser realizada três anos após o sepultamento.
Os valores cobrados eram diferentes a cada contato e o pagamento final ter ficado cerca de R$ 1.000 acima do valor orçado anteriormente. Ela ainda chama a atenção para a falta de sensibilidade apresentada durante todo o procedimento.
Havia pausas não programadas por parte do funcionário responsável pela exumação. Também pode presenciar discussões e cobranças por telefone feitas pelo mesmo funcionário ao seu supervisor por supostamente não repassar os valores de horas extras de forma correta.
“Em determinado momento chega um segundo funcionário chamando sua atenção e mostrando que, do pescoço até a bacia, o corpo estava intacto, ou seja, não poderia ter iniciado o procedimento de exumação. Ele retoma as partes já retiradas para a cova e o enterra novamente”, relembra.
“Então o funcionário começa a reclamar comigo (que já estava em choque por ter presenciado este momento que foi desnecessário), sobre a falta de orientação e treinamento para o serviço e que os funcionários não recebem o salário conforme contratado, e me solicita uma gorjeta no valor de R$100,00”, continua.
Tatiane define a situação como traumática, e avalia que os serviços prestados ficaram muito aquém do valor pago.
“Ao término de tudo, compareci à secretaria do cemitério para verificar o próximo passo e tive que efetuar o pagamento tanto da exumação que não ocorreu, como a taxa para sepultamento, novamente, e um valor para ficar por mais três anos. O familiar acaba pagando sem questionamento, na maioria das vezes, pois quer sair dali o mais rápido possível depois de tanta dor e descaso com o ser humano”, diz.
Descaso
Ao serem perguntadas sobre eventuais sugestões para a melhoria do Serviço Funerário Municipal, todas as fontes apresentadas durante a reportagem apontaram a reestatização como uma possibilidade de reduzir os valores gastos e, eventualmente, acessarem à gratuidade no processo de sepultamento.
No entanto, dentro de um contexto onde cada vez mais a iniciativa privada se apropria do funcionamento de serviços públicos, o que resta é tentar preparar-se para eventuais imprevistos dentro de um contexto de sobrevivência e busca pelo pão de cada dia.
“O mínimo que eu acho que nossos governantes tinham que fazer por nós cidadãos é um enterro de graça. Acho que isso não deveria ser cobrado porque a gente batalha pra caramba pra viver, dar um futuro melhor pros nossos parentes, pros nossos filhos. E aí na hora de morrer a gente tem que pagar por isso. Até pra morrer é difícil. Deveria ser tudo gratuito”, avalia Jaqueline.
O Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo é o principal oposicionista à terceirização do Serviço Funerário Municipal e responsável por pressionar a Prefeitura pela reestatização.
Confira a nota enviada à reportagem:
“O Sindicato defende a anulação da concessão do Serviço Funerário Municipal de São Paulo e o seu fortalecimento com a recomposição do quadro de profissionais necessários para atender a cidade. É preciso investir e desterceirizar os serviços e processos. O respeito ao sepultamento, ao rito fúnebre, ao luto das famílias é um direito fundamental. Os cemitérios são um patrimônio social da cidade, parte da história e devem ser preservados e cuidados diante de vandalismo”.
André Santos, Thiago Borges, Rafael Cristiano