Queria é poder fazer show aqui todo dia
, disse Rico Dalasam pro público que lotou o Galpão Cultural Humbalada na inauguração do Periferia Trans. O LGBT teve que correr pro centro por muitos anos para ser quem é, mas hoje existem espaços como esse em que ele pode se libertar.
Não é à toa que num dia de meio de semana, em plena quarta-feira à noite, mais de 50 pessoas estavam no Galpão Cultural Humbalada, ao lado do Terminal Grajaú da CPTM (Extremo Sul de São Paulo), para discutir como a Teoria Queer se aplica às periferias.
Que porra é essa?
A noite foi de desconstrução do termo Queer, que chegou ao Brasil pelos livros dos acadêmicos e acadêmicas dos Estados Unidos. O debate começou com a fala da professora Mayra Lourenço, que leva a luta pelo fim da desigualdade e estereótipos de gênero dentro e fora das salas de aula, na região do Grajaú.
Na periferia, assim como fora dela, mas com particularidades, a sociedade vive conforme os estereótipos de gênero que ditam, que se enquadram na lógica “binária” do homem e a mulher. E para falar de teoria Queer, é preciso entender que a sociedade delimita algumas atividades diferentes conforme o sexo biológico do ser humano.
Se a criança nasce com vagina, o nome será feminino, as brincadeiras serão de ‘casinha’, as roupas ‘de mulher’, e por aí vai. Mas acontece que, nesse jogo, muita gente que não se enquadra é invisibilizada na sociedade. A criança trans, que não se manifesta conforme os padrões de gênero atribuídos ao seu sexo biológico, não tem um banheiro na escola que a acolha.
Na Teoria Queer, Judith Butler mostra que as pessoas constroem a cada dia, através de seu discurso, uma performance social conforme seu gênero, a que chama performatividade. Para Mayra, todos os dias, reiteramos em que somos do nosso gênero por meio da forma como agimos
. Esses atos de comprovação do gênero são inconscientes, já impostos pela cultura, nós apenas deixamos levar, mas quando uma pessoa escapa dos estereótipos que ‘cabem’ a ela, sofre opressões
, explica.
A pedagogia Queer busca, então, abolir os papeis de gênero e incluir a todos sem estabelecer nenhum padrão, de forma que não se limite experiências. Mas o recorte de gênero sozinho não basta, pois para desconstruí-lo, também é necessário traçar bem os recortes de classe e raça.
Quem conhece a realidade social vê que o que está no papel das pesquisas queer perde seu sentido. Para Ariel Nobre, que integrou o debate e é homem transexual, a chegada do “queer” também trouxe um tipo mercado de consumo e, consequentemente, a orientação sexual está sendo monetizada na sociedade.
“Lésbica bem sucedida não é chamada de sapatão. A orientação sexual está sendo elitizada” – Ariel.
O gênero precisa ser desconstruído: o gay que se enquadra nesse padrão não está inserido no queer. Eu tenho classe, mas a minha classe não tá na mídia, em nada, se tiramos as classes, ainda permanecem essas diferenças entre quem fala e quem é falado
, comenta Ariel. Se deixarmos de falar de forma diferente sobre os trans, as travestis, os gays, as lésbicas, corremos o risco de invisibilizarmos essas pessoas
, critica.
Na mesma linha, Gustavo Bonfiglioli, que faz parte do Coletivo A Revolta da Lâmpada, explica que na estratégia de militância é preciso definir as diferenças para protegê-las. O nosso corpo é livre e inclassificável, não se limita a estereótipos de gênero, mas para conseguir direitos práticos é preciso classificar. Tem que ter lei contra homo, lesbo e transfobia, que assegurem a liberdade de todas as identidades
, comenta.
É papel do Estado, assim como garantir leis de segurança, garantir a disseminação de informações, e um dos passos é incluir a temática ao conteúdo escolar. “Os professores reproduzem as diferenças de gênero e são culpabilizados por isso”. A professora Mayra conta que a repressão vem de dentro da sala de professores, da direção, do próprio conteúdo dos livros, mas a luta deve ser passo a passo, por um Plano Nacional da Educação que contemple a discussão, pela formação dos professores, sem desanimar.
Faz sentido ser Queer no Grajaú?
Segundo Mayra, em nada muda ser queer dentro ou fora do Grajaú. Ela problematiza a questão dizendo que a teoria chega na academia, nas pessoas brancas, cis e héteros. Mas o caminho é pegar ela, se armar em alguns espaços de poder para pressionar direitos. Como que, estando à margem, a gente cria formas alternativas de viver, ser, vencer o sistema?
Reconhecer os próprios privilégios é uma etapa da desconstrução. O Tammy Gretchen, depois que percebeu-se trans, fez a cirurgia, tomou hormônio, etc. O que mais pega para o homem trans é a invisibilidade, é dizerem que não temos nada na genitália. Respostas pra tudo a gente não tem, mas políticas públicas a gente deveria ter
, indaga Ariel. É importante ter uma referência como ele na mídia, mas não é suficiente, já que ser um trans como Tammy não é nada acessível.
Hormônio masculino, por exemplo, só se consegue com receita médica e é caro, uma cirurgia de mudança de sexo custa 12 mil. Ninguém tem acesso à testosterona, mas em qualquer farmácia tem hormônio feminino
. E os palestrantes concordaram que as mudanças só vão acontecer com a luta da militância LGBT, com maior representatividade, e como espelho, veem a luta do movimento negro que tanto tem alcançado nos últimos anos.
Pra chegar no Queer, primeiro, a gente tinha que desconstruir o capitalismo, diz Gustavo.
Não podemos deixar que nossas identidades de gênero se tornem commodities, não é só mostrar na mídia, é possibilitar, participar. A gente precisa ser menos personagem e mais jornalista, ter mais oportunidades de espaços de trabalho. Projetos sobre trans são feitos, legislados, aprovados, criticados por pessoas cis. Aí é aprovado e o tema ainda vira commodity. Não ser commodity não é sair do mercado de trabalho, até porque esse discurso não cabe, não dá pra ficar desempregado por opção, completa.
Ao perguntar para Bruno César, ator da Cia Humbalada de Teatro e idealizador do projeto, sobre a ausência do Estado e de equipamentos que promovam esse tipo de discussão nas periferias, além da presença da moral pré-estabelecida pelo pensamento neocristão praticado por boa parte da igrejas, nota-se que a luta também é do espaço subjetivo.Para ele,
O fato da gente ter uma igreja em cada esquina contribui pra a gente ter essa subjetividade. Ao invés de a gente ter outros equipamentos polarizando e as pessoas acessam esses espaços quando estão no seu tempo livre e não vão a espaços ligados às artes e literatura. Ou é a religião ou a TV… e a gente tá tentando que vá a outros lugares. Por isso a discussão de gênero e sexualidade precisa ir a outros locais além dos que já tem, pra a gente possa ter um lugar onde a pessoa vai”, comenta. E além do espaço simbólico, ter um ponto geográfico também é importante. Para Bruno, “só de ter um ponto de referência na região, como existe na Humbalada e também no Transação, já é uma coisa boa.
E no Periferia Trans, as discussões não param. Ainda tem teatro, debate, show e balada pro público curtir. Quando você entra numa balada é a libertação, pode ser o que quiser aqui, por isso que a gente faz festa aqui!
, diz Bruno.
Veja a programação completa em: http://periferiatrans.tumblr.com/post/140597898439
Redação PEM
2 Comentários
Acerca dessa questão de binarismo o Universo Racionalista tem um artigo que lança um pouco mais de luz sobre o assunto: http://www.universoracionalista.org/o-pensamento-binario-e-realmente-perigoso-uma-critica-a-teoria-de-genero/
Olá Amanda, obrigada por compartilhar o conteúdo! Vou ler, com certeza! 🙂