Por Julia Vitoria. Foto: Companhia das Letras
O que os mais de 6 mil focos de incêndio registrados no último mês no Pantanal brasileiro têm a ver com a vida nas periferias paulistanas ou nos territórios de um povo indígena em Minas Gerais? Para Ailton Krenak, tem tudo a ver.
O líder indígena, ativista, pesquisador e pensador aponta que a corrida pela urbanização e modernização que acontece desde a República Velha vem devastando drasticamente as paisagens e biomas da nossa natureza.
“Uma região que era próspera, rica, com muita água e vegetação foi aniquilada. E muito curiosamente o núcleo urbano que mais se instalou foi chamado de ‘Campo Limpo'”, explica ele, em referência ao distrito de São Paulo em que nasce a Feira Literária da Zona Sul (Felizs), que nesta 6ª edição teve a participação de Krenak.
Veja abaixo como foi o debate na íntegra:
“Essa palavra oculta uma prática que aconteceu, sobre limpar o campo, passar a boiada, acabar com a história e povos daquela terra”, continua.
Segundo ele, essa mesma lógica do capitalismo tem explorado corpos e devastado a ancestralidade das paisagens. Isso acontece limpando e reconstruindo campos abertos para especulações imobiliárias, para discriminação, para segregação das comunidades indígenas e outras comunidades caiçaras e tradicionais.
“Há muita brutalidade sendo dirigida às florestas, para tirar esse povo e colocá-los nesses espaços de controle e domínios em áreas urbanas… É mais fácil imaginar o fim do mundo, do que o fim do capitalismo, que tem uma capacidade de convencer e subornar ”, observa Krenak.
Imaginário de pedra
De acordo com dados da Fundação Seade de julho de 2020, estima-se que a população urbana no Estado de São Paulo é de aproximadamente 96,52%.
“Nos roubaram as paisagens e construíram outro imaginário por cima. Atrás dessa metrópole de prédios altos e vidros brilhantes existe um outro cenário, cenário de discriminação, violências e batidas”, nota Krenak.
Mediadora do debate na Felizs, a filósofa Tatiana Minchoni aponta que as diferenças de tempo que existem nos centros urbanos só reforçam a aceleração do cotidiano que nos impede de cultivar a potência dos territórios e dos encontros – tanto com nós mesmos, quanto com nossa ancestralidade.
“Esses tempos corridos e ocupados por longas jornadas de trabalho esvaziam o próprio sentido de experiência da vida. Neste caso, o sentido está exclusivamente atribuído aos humanos. Os mesmos que esvaziam de sentidos os rios, a natureza e as florestas, vendo os mesmos como somente recursos”, complmenta Tatiana.
Krenak ainda pontua que essa imposição vertical sobre os corpos tem criado uma sociedade de escravos voluntários, que aceitam essa filosofia como forma de progresso.
“Devemos considerar uma possibilidade de fuga se conseguirmos perceber que o tipo de vida capitalista e o mundo do trabalho nessa lógica de exploração, abona nossa liberdade”, diz ele. “Quando você tem 2 ou 3 gerações que as crianças só ficam contidas em casa, enquanto a mãe e o pai trabalham… Depois essas crianças criam corpos para ir ao trabalho, e reproduzir a mesma coisa em mais 2 ou 3 gerações”, continua.
A metamorfose da resistência
“Tudo nessa paisagem é aldeia, é território e lugar de ancestralidade indígena. A vida vai além das nossas células, está no chão que pisamos. Embaixo dessa terra calcinada pela especulação, nasce poesia, nasce música, nasce persistência e coragem. Coragem para se fazer uma feira literária que nos desperta para um novo mundo, uma nova paisagem”, reforça Krenak.
Para ele, a literatura está profundamente ligada à arte da sobrevivência. A arte de produzir novos mundos – é disso que eu me alimento.
“A terra tem essa potência poética que vem do íntimo de cada um de nós. É uma verdadeira rebelião na criação de novos mundos”, conclui.
Este conteúdo faz parte do Quebrada Comunica, projeto de fortalecimento do campo da comunicação periférica da cidade de São Paulo idealizado pela Rede Jornalistas das Periferias em parceria com o Instituto de Referência Negra Peregum e o Fórum de Comunicação e Territórios
Redação PEM
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