Kit de fim de ano: Para ficar no sofá ou dar um rolê, roupa de Natal é “armadura” na quebrada

Kit de fim de ano: Para ficar no sofá ou dar um rolê, roupa de Natal é “armadura” na quebrada

Nas periferias brasileiras, a moda é um poderoso instrumento de afirmação da identidade, especialmente durante as festas de fim de ano. A busca pelo "kit” impecável vai além do consumo, representando um investimento na autoestima e na forma de se colocar no mundo

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Tempo de leitura: 11 minutos

Por André Santos. Edição: Thiago Borges. Fotos: Vitori Jumapili

“Eu acho que essa é a época que a gente que é da quebrada mais espera, tá ligado? Porque a gente, às vezes, junta dinheiro o ano todo pra poder passar o final do ano com o kit impecável. Desde que eu me entendo por gente sempre foi assim”. 

O relato de Aysha Oliveira (também conhecida como Neguinha Drak Enjoada), de 22 anos,  é algo bastante comum dentro dos lares de famílias brasileiras. Moradora da Casa Verde Alta (zona Norte de São Paulo), ela atua como influencer, modelo, design de moda e stylist.

Para muita gente, passar as festas de fim de ano usando roupas novas é uma com o intuito de atrair energias positivas para o ano que se inicia. Mas é também, sobretudo dentro de um contexto periférico, um hábito de consumo que exalta a autoestima e o senso de pertencimento.

“A periferia historicamente está em um lugar de vulnerabilidade social, e nós que ocupamos esse espaço estamos habituados a lidar com as faltas. Eu vejo como uma memória afetiva o hábito que as famílias têm das compras de final de ano, de roupas, sapatos, cabelo, unha para entrar o ano com pé direito e no kit. Muitas vezes, a gente se planeja o ano todo pra isso. Autoestima é ferramenta de pertencimento no mundo”, conta Gabi Bazilio, de 28 anos. Moradora do Grajaú (Extremo Sul de São Paulo), ela é criadora de moda afrontosa desde 2016 e dona do Mocamba Ateliê.

Segundo levantamento realizado no ano de 2019 pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) em todas as 27 capitais do País mais da metade (54%) das pessoas entrevistadas pretendiam comprar algum item de vestuário, calçado ou acessório para a ocasião.

Dinheiro e autonomia

De acordo com o pesquisador Wes Xavier (também conhecido como Ogum Doce), especialista em comportamento de Consumo Periférico e idealizador da Vivência Lab, a rotina de trabalho e a manutenção da economia dentro das periferias são fatores determinantes para que a população passe a ter maior autonomia de seus gastos no fim de ano. 

O 13º salário recebido por muita gente pode ser investido em coisas que, eventualmente, possam ter sido deixadas de lado em outros momentos.

Wes Xavier, à direita (foto: Arquivo pessoal)

“Boa parte das pessoas de periferia estão dentro de uma jornada CLT, ou em um regime PJ dentro de uma rotina CLT, então esperam o final do ano dentro de uma perspectiva de ter uma grana extra, e eu acho que não tem como ignorar o poder do 13° como uma possibilidade de fazer manutenções muito importantes. É o momento que as pessoas estão podendo fazer algumas escolhas, porque há uma possibilidade de renda maior”, avalia Wes.

O pesquisador destaca que, a partir desse acesso à renda e da possibilidade de promover essas manutenções, sejam no campo da saúde, habitação ou da autoestima, há um aquecimento da economia local. 

“Esses espaços de consumo popular acabam ficando muito lotados nessa época do ano por conta dessa possibilidade de navegação, de pensar o dinheiro de uma forma um pouco mais segura, e quando os consumidores periféricos têm um pouco maior de autonomia não tem como a gente desconsiderar que a manutenção da autoestima é um item muito importante dentro dessa lógica de necessidades que a gente precisa investir”, pontua Wes.

Símbolos de potência

Gabi Bazilio conta que o fim de ano é a época mais esperada e próspera para sua loja, com aumento significativo na movimentação de clientes que buscam peças especiais para a ocasião. 

“De modo geral, a maioria busca um look para alguma ocasião especial, eventos, apresentações, datas comemorativas. Como o meu trabalho é autoral, eles veem a oportunidade de expressar sua identidade e se sentirem bem com uma peça exclusiva. Percebo a preocupação em aparecer bem na foto principalmente pelo desejo de algo único que se diferencie dos demais”, avalia.

O gasto vai além da vestimenta. 

Tendência nas periferias de todo o Brasil, especialmente no fim de ano, o ‘nevou’, corte de cabelo platinado, possui um custo elevado para a realização, mas nem por isso deixa de ser prioridade para muitas pessoas. 

“Olhar historicamente para isso é ver como que, ao longo dos anos, as periferias ainda continuam entendendo a necessidade de manutenção da autoestima através de um cuidado de beleza e saúde assim como também de compra de roupas, acessórios, calçados de uma maneira geral como uma ferramenta para se blindarem pra pensar o ano novo”, aponta Wes.

“Então, pô, vou comprar meu kit de final de ano. Por que eu vou comprar meu kit de final de ano? Porque eu quero passar o ano lembrando que eu sou uma pessoa potente e que isso me leva para um lugar de mais saúde, potência e autonomia no mundo. Isso vai me permitir ter segurança para pensar meu futuro nessa virada simbólica de ano”, continua ele.

“Armadura social”

Enquanto forma de expressão, a moda é um importante canal de construção da identidade periférica. A partir de vivências pessoais, do modo de ser e habitar o mundo e diversos outros fatores, as pessoas se comunicam sob uma ótica muito particular de como se colocar na sociedade. 

Para Aysha, que utiliza diversos elementos da cultura do funk para compor seus looks, a periferia não se restringe só a esse tipo de criação, tendo múltiplas possibilidades de pensar e fazer essas produções.

Aysha atua com o upcycling, técnica que consiste em dar novos usos a tecidos e peças de roupa que seriam descartados em outros contextos. No início do ano, ela criou a Finesse Company para mostrar às pessoas que as roupas podem ser usadas de diferentes formas, mesmo que com poucos recursos. Além disso, a prática é sustentável.

Dos brechós às marcas locais, quebrada reinventa moda e hábitos de consumo

“Você pode pegar uma blusa e transformar numa bolsa, pode pegar uma calça e transformar numa saia, reduzir o impacto que tem no meio ambiente, tá ligado? Porque no lugar que nós vivemos já não é muito daora e, querendo ou não, da onde nós veio já não tem muito acesso à informação também, tá ligado? Então, o máximo de informação que eu puder trazer, eu acho daora”, diz Aysha.

Gabi Bazilio aponta que, desde que o mundo é mundo, a população periférica é pioneira e especialista na arte de ressignificar e ditar moda. Aysha segue uma linha de raciocínio similar, e pontua que uma das coisas que mais destaca a produção e consumo de moda das periferias é a originalidade.

“O jeito de se vestir, pra mim, é muito, muito original. A gente conseguiu fazer marcas voltadas pro esporte serem marcas que a gente consome no dia a dia, tá ligado? Isso, pra mim, é muita coisa”, diz Aysha.

Estética, memória e identidade: Os significados estampados nas camisetas de futebol de várzea

Além disso, Gabi avalia que a preocupação com a moda é sobre resgate também. Ela ressalta que essa conexão com a própria identidade é preponderante para que as pessoas possam se reconhecer de forma mais elucidada sobre quem são e, a partir disso, acessar novos espaços.

“Através da moda, aprendi a importância que a autoestima exerce em tudo o que a gente faz na vida, o resgate através do reconhecimento da nossa história e potência é uma ferramenta poderosa para conquistar e acessar espaços”, diz ela.

Para Wes Xavier, não dá pra pensar em influência de moda, ainda mais no fim de ano, sem pensar em marcadores de ascensão de mobilidade econômica e social. O pesquisador aponta que alguns produtos, como um tênis ou um iPhone, têm a capacidade de comunicar ao mundo que a pessoa consumidora tem segurança e autonomia o suficiente para ter esses itens, como uma mensagem de que “o corre está em dia”.

“Essa questão do corpo biológico e do corpo social influenciam muito quem nós somos no mundo. Então, comprar roupas que são lidas como roupas que transparecem que você é uma pessoa potente vai te trazer uma imunidade em relação a esse atravessamento de dores e desafios. De certo modo, isso te leva para um lugar de autoestima. Uma pessoa que não está sofrendo violências consegue construir autoestima”, conclui Wes.

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Por André Santos. Edição: Thiago Borges. Fotos: Vitori Jumapili

“Eu acho que essa é a época que a gente que é da quebrada mais espera, tá ligado? Porque a gente, às vezes, junta dinheiro o ano todo pra poder passar o final do ano com o kit impecável. Desde que eu me entendo por gente sempre foi assim”. 

O relato de Aysha Oliveira (também conhecida como Neguinha Drak Enjoada), de 22 anos,  é algo bastante comum dentro dos lares de famílias brasileiras. Moradora da Casa Verde Alta (zona Norte de São Paulo), ela atua como influencer, modelo, design de moda e stylist.

Para muita gente, passar as festas de fim de ano usando roupas novas é uma com o intuito de atrair energias positivas para o ano que se inicia. Mas é também, sobretudo dentro de um contexto periférico, um hábito de consumo que exalta a autoestima e o senso de pertencimento.

“A periferia historicamente está em um lugar de vulnerabilidade social, e nós que ocupamos esse espaço estamos habituados a lidar com as faltas. Eu vejo como uma memória afetiva o hábito que as famílias têm das compras de final de ano, de roupas, sapatos, cabelo, unha para entrar o ano com pé direito e no kit. Muitas vezes, a gente se planeja o ano todo pra isso. Autoestima é ferramenta de pertencimento no mundo”, conta Gabi Bazilio, de 28 anos. Moradora do Grajaú (Extremo Sul de São Paulo), ela é criadora de moda afrontosa desde 2016 e dona do Mocamba Ateliê.

Segundo levantamento realizado no ano de 2019 pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) em todas as 27 capitais do País mais da metade (54%) das pessoas entrevistadas pretendiam comprar algum item de vestuário, calçado ou acessório para a ocasião.

Dinheiro e autonomia

De acordo com o pesquisador Wes Xavier (também conhecido como Ogum Doce), especialista em comportamento de Consumo Periférico e idealizador da Vivência Lab, a rotina de trabalho e a manutenção da economia dentro das periferias são fatores determinantes para que a população passe a ter maior autonomia de seus gastos no fim de ano. 

O 13º salário recebido por muita gente pode ser investido em coisas que, eventualmente, possam ter sido deixadas de lado em outros momentos.

Wes Xavier, à direita (foto: Arquivo pessoal)

“Boa parte das pessoas de periferia estão dentro de uma jornada CLT, ou em um regime PJ dentro de uma rotina CLT, então esperam o final do ano dentro de uma perspectiva de ter uma grana extra, e eu acho que não tem como ignorar o poder do 13° como uma possibilidade de fazer manutenções muito importantes. É o momento que as pessoas estão podendo fazer algumas escolhas, porque há uma possibilidade de renda maior”, avalia Wes.

O pesquisador destaca que, a partir desse acesso à renda e da possibilidade de promover essas manutenções, sejam no campo da saúde, habitação ou da autoestima, há um aquecimento da economia local. 

“Esses espaços de consumo popular acabam ficando muito lotados nessa época do ano por conta dessa possibilidade de navegação, de pensar o dinheiro de uma forma um pouco mais segura, e quando os consumidores periféricos têm um pouco maior de autonomia não tem como a gente desconsiderar que a manutenção da autoestima é um item muito importante dentro dessa lógica de necessidades que a gente precisa investir”, pontua Wes.

Símbolos de potência

Gabi Bazilio conta que o fim de ano é a época mais esperada e próspera para sua loja, com aumento significativo na movimentação de clientes que buscam peças especiais para a ocasião. 

“De modo geral, a maioria busca um look para alguma ocasião especial, eventos, apresentações, datas comemorativas. Como o meu trabalho é autoral, eles veem a oportunidade de expressar sua identidade e se sentirem bem com uma peça exclusiva. Percebo a preocupação em aparecer bem na foto principalmente pelo desejo de algo único que se diferencie dos demais”, avalia.

O gasto vai além da vestimenta. 

Tendência nas periferias de todo o Brasil, especialmente no fim de ano, o ‘nevou’, corte de cabelo platinado, possui um custo elevado para a realização, mas nem por isso deixa de ser prioridade para muitas pessoas. 

“Olhar historicamente para isso é ver como que, ao longo dos anos, as periferias ainda continuam entendendo a necessidade de manutenção da autoestima através de um cuidado de beleza e saúde assim como também de compra de roupas, acessórios, calçados de uma maneira geral como uma ferramenta para se blindarem pra pensar o ano novo”, aponta Wes.

“Então, pô, vou comprar meu kit de final de ano. Por que eu vou comprar meu kit de final de ano? Porque eu quero passar o ano lembrando que eu sou uma pessoa potente e que isso me leva para um lugar de mais saúde, potência e autonomia no mundo. Isso vai me permitir ter segurança para pensar meu futuro nessa virada simbólica de ano”, continua ele.

“Armadura social”

Enquanto forma de expressão, a moda é um importante canal de construção da identidade periférica. A partir de vivências pessoais, do modo de ser e habitar o mundo e diversos outros fatores, as pessoas se comunicam sob uma ótica muito particular de como se colocar na sociedade. 

Para Aysha, que utiliza diversos elementos da cultura do funk para compor seus looks, a periferia não se restringe só a esse tipo de criação, tendo múltiplas possibilidades de pensar e fazer essas produções.

Aysha atua com o upcycling, técnica que consiste em dar novos usos a tecidos e peças de roupa que seriam descartados em outros contextos. No início do ano, ela criou a Finesse Company para mostrar às pessoas que as roupas podem ser usadas de diferentes formas, mesmo que com poucos recursos. Além disso, a prática é sustentável.

Dos brechós às marcas locais, quebrada reinventa moda e hábitos de consumo

“Você pode pegar uma blusa e transformar numa bolsa, pode pegar uma calça e transformar numa saia, reduzir o impacto que tem no meio ambiente, tá ligado? Porque no lugar que nós vivemos já não é muito daora e, querendo ou não, da onde nós veio já não tem muito acesso à informação também, tá ligado? Então, o máximo de informação que eu puder trazer, eu acho daora”, diz Aysha.

Gabi Bazilio aponta que, desde que o mundo é mundo, a população periférica é pioneira e especialista na arte de ressignificar e ditar moda. Aysha segue uma linha de raciocínio similar, e pontua que uma das coisas que mais destaca a produção e consumo de moda das periferias é a originalidade.

“O jeito de se vestir, pra mim, é muito, muito original. A gente conseguiu fazer marcas voltadas pro esporte serem marcas que a gente consome no dia a dia, tá ligado? Isso, pra mim, é muita coisa”, diz Aysha.

Estética, memória e identidade: Os significados estampados nas camisetas de futebol de várzea

Além disso, Gabi avalia que a preocupação com a moda é sobre resgate também. Ela ressalta que essa conexão com a própria identidade é preponderante para que as pessoas possam se reconhecer de forma mais elucidada sobre quem são e, a partir disso, acessar novos espaços.

“Através da moda, aprendi a importância que a autoestima exerce em tudo o que a gente faz na vida, o resgate através do reconhecimento da nossa história e potência é uma ferramenta poderosa para conquistar e acessar espaços”, diz ela.

Para Wes Xavier, não dá pra pensar em influência de moda, ainda mais no fim de ano, sem pensar em marcadores de ascensão de mobilidade econômica e social. O pesquisador aponta que alguns produtos, como um tênis ou um iPhone, têm a capacidade de comunicar ao mundo que a pessoa consumidora tem segurança e autonomia o suficiente para ter esses itens, como uma mensagem de que “o corre está em dia”.

“Essa questão do corpo biológico e do corpo social influenciam muito quem nós somos no mundo. Então, comprar roupas que são lidas como roupas que transparecem que você é uma pessoa potente vai te trazer uma imunidade em relação a esse atravessamento de dores e desafios. De certo modo, isso te leva para um lugar de autoestima. Uma pessoa que não está sofrendo violências consegue construir autoestima”, conclui Wes.

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