Como a falta de direitos na infância gera traumas na vida adulta?

Como a falta de direitos na infância gera traumas na vida adulta?

Na semana em que o Estatuto da Criança e do Adolescente completa 35 anos, a Periferia em Movimento escuta pessoas de diferentes idades sobre lembranças do passado e ações no presente para garantir dignidade

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Tempo de leitura: 8 minutos

Por Thiago Borges (reportagem e edição) e Aline Rodrigues (reportagem)

Maria Jovita teve pouco tempo para brincar e descobrir as coisas do mundo de maneira lúdica. Terceira de 11 filhos e filhas, ela teve de ajudar a cuidar dos irmãos mais novos e perdeu parte da infância e da adolescência.

“Eu sou revoltadíssima até hoje”, diz ela, aos 58 anos. “Eu não tinha escolha”.

Há nove anos o trauma acumulado explodiu, nas palavras da própria Jovita. Com ansiedade e depressão, a moradora do Jardim Rebouças (zona Sul de São Paulo) descobriu no artesanato uma forma de focar a mente no momento presente.

As oficinas de pintura em pano de prato acontecem no Serviço de Assistência Social à Família (SASF) do Campo Limpo, localizado no Parque Regina. Durante uma atividade acompanhada pela Periferia em Movimento, outras mulheres adultas desabafaram sobre dificuldades vividas na infância.

“A gente ia estudar super longe, porque não tinha colégio aqui perto. A gente mal sabia os nossos direitos, né? (…) A minha mãe lutava para comprar os materiais. Hoje, não é assim”, lembra Nilcélia Pereira, de 57 anos.

“Tinha enchente e eu enfrentava a enchente [para ir pra escola]. A gente não sabia dos nossos direitos e tinha pouca gente com coragem para enfrentar”, continua a moradora do Jardim Ingá.

Diversos estudos apontam a ligação entre traumas na infância e o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos. Acidentes graves, desastres naturais, violência doméstica, abuso físico e sexual e a orfandade estão entre eventos significativos.

Uma pesquisa da Faculdade de Medicina (FM) da Universidade de São Paulo (USP) em parceria com a Universidade de Bath, no Reino Unido, analisou dados de mais de 4 mil jovens do Brasil e identificou que mais de 80% vivenciaram ao menos um evento traumático até os 18 anos. Estima-se que 30,6% dos diagnósticos aos 18 anos estejam relacionados a experiências traumáticas na infância.

Professora de artesanato no SASF, Selma Aparecida Lourenço dos Santos observa que a falta de acesso a direitos básicos na infância e adolescência causa impactos por toda a vida, seja na saúde, na educação ou na segurança, por exemplo.

“O direito existe, mas ele tem que sair do papel e vir para a prática. Ele tem que vir para o nosso dia a dia, toda hora, todo minuto e acontecer de verdade”, diz ela.

Por isso, o papel do SASF é acompanhar famílias em situação de maior risco social para facilitar o acesso delas a direitos fundamentais – e assim, superar as vulnerabilidades.

“Eu mesma entrei no artesanato porque eu tive um período muito difícil da minha vida em que eu tive depressão, aí o médico me orientou a fazer o artesanato que era bom para mente. E eu entrei nessa área e eu eu não consigo mais sair”, indica Adriana Lima, moradora do Parque Regina.

Ressignificar

Um lar acolhedor, uma família estruturada, comida na mesa, teto seguro, vacinas em dia, escola garantida, o direito de brincar… A infância saudável é composta por um conjunto de direitos básicos que muita gente ainda não tem acesso.

“Os territórios e lugares que a criança e o adolescente se relacionam precisam fortalecer direitos fundamentais, como a alimentação, saúde, moradia, educação e até a participação política”, aponta a psicóloga Samara Monteiro, que atua como educadora em um serviço de saúde mental no Extremo Sul de São Paulo.

“Quando isso é negado, a infância e a adolescência ficam marcadas”, continua ela, que também é atriz na Cia Enchendo Laje & Soltando Pipa.

No dia a dia do serviço de saúde, a assistente social Iris Amorim observa o quanto algumas famílias em vulnerabilidade acabam reproduzindo negligências com as próprias crianças.

“Os traumas não estão isolados desse contexto social. Os determinantes sociais são importantíssimos porque acabam tendo como reflexo o adoecimento”, aponta Iris.

Divulgado em maio deste ano, o Atlas da Violência analisou dados do Ministério da Saúde que mostram um crescimento de ataques contra crianças e adolescentes: entre 2013 e 2023, o número passou de 35 mil para 115 mil vítimas.

As crianças de até quatro anos são principais vítimas de abandono e falta de cuidados, enquanto até os 14 anos os principais casos são de violência psicológica e sexual. E a violência física afeta principalmente adolescentes até os 19 anos.

Em todas as faixas etárias, mais da metade dos casos acontece dentro de casa.

Por isso, Iris destaca que a superação desses traumas vai além da “psicologização” de tudo, principalmente porque em muitos casos são sofrimentos sociais. É preciso agir em rede, com participação do poder público e da sociedade civil, para promover educação cidadã, romper ciclos de violência, disseminar direitos e auxiliar as pessoas a exercê-los.

Para Samara, esse é um caminho para ressignificar os traumas – não para romantizar nem esquecer o sofrimento, mas sim para construir novas possibilidades para a própria vida.

E ela continua: “As políticas públicas têm que ir em busca das pessoas, desse território, acolhendo, cuidando, porque senão essa informação não chega. A pessoa não consegue reconhecer, muitas vezes, a situação que ela está vivendo. (…) É papel da política pública acessar essas pessoas e fortalecer esses direitos”.

Educação por direitos

Atividade com Imprensa Jovem da EMEF Jorge Americano (foto Thiago Borges)

Atividade com Imprensa Jovem da EMEF Jorge Americano (foto Thiago Borges)

Na EMEF Professor Jorge Americano, localizada no Valo Velho, região do Capão Redondo (zona Sul de São Paulo), pré-adolescentes vivenciam situações cotidianas e refletem sobre elas em sala de aula.

A existência de crianças que são obrigadas a trabalhar ou que não têm o que comer é um relato comum trazido por algumas delas. E na rotina da escola, o bullying é uma questão recorrente.

Mas estudantes sabem mencionar mecanismos para trabalhar contra isso, como o próprio grêmio estudantil, que garante a participação política na gestão escolar; e da Imprensa Jovem, programa da Prefeitura que promove a educação midiática.

“A gente fez um podcast sobre bullying porque pode nos ajudar a falar sobre como o bullying se manifesta nas escolas. É isso pode ajudar a gente a resolver sobre os assuntos de brigas, etc”, nota a aluna Ana Clara, de 12 anos.

Em uma atividade acompanhada pela Periferia em Movimento, a turma trouxe o que entendem como direitos básicos de crianças e adolescentes: de brincar, ter uma moradia, estudar ou acessar a saúde.

“Tem casos de obesidade, diabetes, já tem adolescentes assim”, diz a estudante Eduarda, que procura se cuidar. “A minha alimentação é boa, eu gosto de tomar água, isso é importante para quando tiver mais idade”.

Para saber mais!

Ao longo de quatro episódios publicados entre maio e julho, o podcast Cria Histórias mergulhou na história das infâncias brasileiras para discutir abusos, violência e exploração e propor formas de assegurar direitos a crianças e adolescentes.

Produzido pela Cria Coragem, iniciativa do Instituto Çarê, o podcast traz ainda materiais de apoio aqui. https://criacoragem.com.br/

Agradecemos ao SASF Campo Limpo e à EMEF Professor Jorge Americano pela colaboração para produção dessa reportagem.

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