Por Thiago Borges, no Jornal Cidadania
Inclusão das periferias. Apesar de ser objetivo do artigo, não vamos falar sobre isso, beleza?
Explico: quando ouço a palavra “inclusão”, fico logo desconfiado. Supõe que há um grupo de excluídos que precisa ser integrado a uma realidade teoricamente melhor que, obviamente, é apresentada dessa forma por quem já faz parte dela. Jesuítas batalharam para incluir povos indígenas no novo sistema implantando pelos portugueses recém-chegados ao Brasil. Com a desculpa da salvação, impuseram a religião cristã e os costumes europeus para legitimar a dominação dos colonizadores. E há vários outros exemplos de nossa história, que dão ao termo “inclusão” um sentido de “favor”. Na dúvida, não use o termo.
A última década foi de redenção para nós, sujeitos periféricos. Nesse período, a qualidade de vida melhorou nas quebradas. O acesso facilitado ao crédito e o aumento da renda nos últimos anos propiciaram a aquisição de TVs de tela plana, canais a cabo, smartphones conectados à internet, carro zero na garagem… A periferia onde vivo é “digna” de ter congestionamentos.
Antes considerado violento e miserável, nosso território é a menina dos olhos para empresas que querem aumentar seus dividendos. Enquanto os moradores da região central de São Paulo ampliaram seus gastos em 22,9% entre 2005 e 2010, nós periféricos aumentamos nossas despesas em 61,6%, segundo o Instituto Data Popular. Ao considerar que somos 8,4 milhões de pessoas nas bordas da capital paulista, é possível ter uma dimensão do que esse percentual representa. Em todo País, quase 60 milhões de pessoas vivem nas periferias das grandes cidades. Dos mais de 100 milhões de brasileiros da chamada classe C, 32 milhões são jovens das quebradas.
Já consumíamos bastante num passado recente, mas éramos invisíveis às grandes empresas. Forçamos essa “inclusão” no mercado de consumo por termos mais dinheiro no bolso. Executivos ainda tentam entender o que pensamos, o que fazemos, o que queremos para, quem sabe, vender mais para nós. Mérito de quem conseguir.
Se por um lado temos acesso a bens que antes povoavam nossos sonhos, por outro ainda precisamos lidar com problemas antigos. O esgoto continua a céu aberto, a eletricidade permanece irregular, o médico não comparece ao posto de saúde nem há creche para deixar as crianças. O ônibus passa lotado e o trem demora a encostar na plataforma. Enquanto um cidadão de Moema gasta 34 minutos para ir de casa ao trabalho, o tempo mais que dobra para moradores de Cidade Tiradentes (1h19min), Grajaú (1h16min) ou Itaim Paulista (1h07min).
Sem serviços básicos garantidos, gastamos com a assinatura da TV paga o que gostaríamos de empregar na conta da companhia de saneamento do estado.
Nossos amigos e parentes continuam morrendo nas mãos da polícia militar – o braço do estado mais presente por essas bandas. E não precisa fazer parte do crime organizado para isso. Aqui, onde as balas não são de borracha, autoridades atiram antes para depois checar quem é o suspeito. Aguardamos a implementação do estado democrático de direito.
Vale repetir: não queremos inclusão. E o caso de Paraisópolis é exemplar. A segunda maior favela-bairro de São Paulo tem mais de 60 ONGs em seu território. Menos de 10% têm origem local. O restante foi aberto por ativistas do centro, motivados pelo desejo de “incluir”.
Quantas crianças frequentaram as aulas de balé de fato e poderão tentar uma carreira profissional na área? E quantas, depois de receber o diploma, vão trabalhar em padarias? A questão-chave é: esses projetos sociais contribuem para uma mudança efetiva da realidade dessas pessoas ou ajudam a perpetuar a pobreza, em troca do verniz social sobre a fachada dessas organizações?
Das empresas aos governantes, com um importante destaque ao terceiro setor, todos querem nos “incluir”. E se frustram quando não cumprimos com o planejado. No Grajaú, onde moro, agentes da prefeitura lamentam que a Casa de Cultura Palhaço Carequinha permaneça às moscas. Enquanto isso, do lado externo desse elefante branco, jovens se reúnem diariamente para conversar, andar de skate, ouvir música. Concebido no centro, o equipamento chegou pronto à periferia. Mais uma vez, forasteiros desembarcaram no nosso mundo dizendo o que é melhor para nós.
A gente já sabe o que nos interessa. O abandono histórico dessas regiões foi palco para o surgimento e fortalecimento de importantes movimentos sociais – como a luta popular por moradia, saúde, educação e transporte – e o florescimento de diversos coletivos culturais. A começar pelo hip hop, que salvou milhares vidas nos sangrentos 1990, às rodas de samba, os grupos vocacionais de dança e teatro, as produtoras audiovisuais, os escritores e o circuito de saraus, até o funk ostentação.
Como diz o antropólogo Hermano Vianna, “a periferia cansou de esperar a oportunidade que viria de fora, do centro, e nunca chegava”. Criamos nós as oportunidades: transformamos bares em centros culturais, ocupamos ruas e beiras de represas, fundamos bancos comunitários para estimular a economia local, gestamos processos criativos e em rede, lideramos a adoção de permacultura na metrópole, propomos soluções para os problemas da cidade. Acredite, somos capazes.
Governantes: precisamos participar da formulação de políticas públicas. Empresas: a gente diz o que quer comprar. Terceiro setor: por favor, sem “coitadismo” nem ilusão. Tudo o que queremos é ser ouvidos e que nossos direitos sejam assegurados. Só assim pode ocorrer uma transformação. Inclusão? Me inclua fora dessa.
(*) Thiago Borges, 26 anos, é jornalista, integrante deste coletivo de comunicação Periferia em Movimento e morador do Grajaú, no extremo Sul de São Paulo.
O artigo foi originalmente publicado no Jornal Cidadania, publicação da Gazeta/Fundação Cásper Líbero voltada a empresas e organizações do terceiro setor
Foto: reprodução do filme “Quanto vale ou é por quilo?” Assista aqui!
Thiago Borges