Halloween? No dia 31 de outubro, o Saci merece correr livre pelos redemoinhos da cultura brasileira

OPINIÃO

Halloween? No dia 31 de outubro, o Saci merece correr livre pelos redemoinhos da cultura brasileira

Por: Waldete Tristão*

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Tempo de leitura: 9 minutos

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“Pra deixar a vida um encantatório, a vida tem que ser encantada! (…)
Ninguém pode viver sem uma explicação do mundo e o Sacy é um mito explicativo do mundo”.
– Ruth Guimarães

Joédson Alves/Agência Brasil

Lembro que na minha infância, na década de 1970, o Saci Pererê era apresentado às crianças das minhas turmas da escola como uma figura travessa e encantadora do folclore nacional, com forte presença na cultura popular e na mídia.

Um dos principais responsáveis por essa popularização foi Monteiro Lobato, cujas obras – especialmente os livros e a série de televisão “Sítio do Picapau Amarelo” – retratavam o Saci como um menino negro de uma perna só, com um gorro vermelho e um cachimbo, sempre envolvido em travessuras, mas também demonstrando esperteza e coragem.

Ele vivia nas matas e gostava de fazer brincadeiras ou enganar as pessoas de forma divertida ou inesperada, escondendo objetos ou assustando animais, talvez uma estratégia para estimular a imaginação das crianças. E embora eu o achasse divertido, também tinha algo que me incomodava – mesmo que eu não soubesse explicar direito naquela época.

Eu via que ele era o único personagem negro nas histórias que eu lia ou assistia. Enquanto os outros eram heróis, princesas, sábios ou corajosos, o Saci era o que aprontava, enganava e assustava. E mais: ele tinha uma deficiência, fumava cachimbo, vivia sozinho no mato. Era como se tudo que fosse diferente – ser negro, ter uma perna só, viver afastado – fosse motivo de medo ou de piada.

Para além das traquinagens, o Saci poderia ampliar valores relacionados à natureza, criatividade e convivência com o desconhecido. Mas, na escola, esse não era o foco. Eu me perguntava: por que o único personagem que parecia comigo era sempre o travesso, o marginalizado? Por que ele não podia ser o herói da história, o que salvava os outros, o que era admirado?

Com o tempo, fui entendendo que essa imagem do Saci carregava um peso e um estigma. Era uma forma de dizer, sem palavras, que o menino negro era o que causava problema, o que não se encaixava, o que precisava ser controlado. E isso machuca. Porque quando você é criança, você quer se ver como alguém bonito, forte, inteligente – não como alguém que só serve para assustar ou atrapalhar.

Hoje eu olho para essa história com outros olhos. Refletir sobre o Saci é refletir sobre identidade, educação e cultura. É perguntar: que histórias estamos contando às nossas crianças? Que imagens estamos reforçando? Que referências estamos perdendo?

É impossível omitir que o Saci tem raízes profundas na cultura afro-brasileira e indígena. Conta-se que ele nasceu como Saci-Cererê entre os povos Tupi-Guarani, e foi transformado ao longo dos séculos pela influência africana – como o cachimbo e a perna perdida em uma roda de capoeira – e europeia, com o gorro vermelho inspirado no Trasgo, uma criatura do folclore português.

Tornado Saci Pererê, o nosso representa resistência, perspicácia e sabedoria popular. Guardião das ervas medicinais, conhece os segredos da mata, e desafia quem tenta dominar o que não entende.

Resistência cultural em tempos de globalização

Joédson Alves/Agência Brasil

Diante do avanço do Halloween no Brasil, o Saci Pererê tem enfrentado um processo de apagamento simbólico. Em meio a abóboras, bruxas e fantasmas importados, o menino de uma perna só, gorro vermelho e cachimbo corre o risco de ser esquecido. Mas há quem resista.

Desde 2004, o Dia do Saci, celebrado em 31 de outubro, foi criado como uma alternativa ao Halloween. A data, oficializada em São Paulo e proposta nacionalmente, busca resgatar e valorizar a cultura popular brasileira, de modo que algumas escolas e centros culturais desafiam os doces e fantasias de contextos estrangeiros aos nossos, promovendo atividades como contação de histórias, teatro, música e oficinas inspiradas na nossa cultura popular.

Um dos principais movimentos nessa direção parte da Sociedade dos Observadores de Saci (SOSACI), sediada em São Luiz do Paraitinga (SP), uma organização que realiza a Festa do Saci, com eventos que celebram o personagem como símbolo de resistência, sabedoria popular e conexão com a natureza. A festa reúne crianças, educadores e artistas em uma verdadeira celebração da cultura regional e identidade local.

Saci e Ossaim: ecos da ancestralidade na floresta brasileira

Para que não haja dúvida, um não é o outro e o outro não é o um!

Joédson Alves/Agência Brasil

É fundamental lembrar que Ossaim é um orixá, uma divindade do panteão iorubá, trazida ao Brasil pelos africanos escravizados entre os séculos 16 e 19, especialmente da tradição nagô-iorubá, que constitui a base do Candomblé Ketu. Ossaim é conhecido como o senhor do axé das folhas, guardião do saber sobre ervas medicinais e curativas, e simboliza a sabedoria ancestral profundamente conectada à natureza.

Em outra perspectiva, o Saci é uma figura do folclore brasileiro, nascido da fusão de elementos indígenas, africanos e europeus. Ele não é uma divindade, mas sim um personagem da cultura popular, um “encantado que encanta”, que vive nas matas, protege os segredos da floresta e desafia quem tenta dominar o que não compreende.

Embora apresentem diferenças essenciais, Ossaim e Saci compartilham traços simbólicos marcantes: ambos têm uma só perna, vivem nas matas, fumam cachimbo e guardam conhecimentos secretos sobre as plantas. Essas semelhanças revelam como o imaginário afro-brasileiro se entrelaça com o folclore nacional, dando origem a figuras que resistem ao apagamento cultural e à colonização simbólica.

O Saci, embora muitas vezes retratado como travesso ou marginalizado, é também um guardião da natureza, conhecedor das ervas medicinais e defensor dos mistérios da floresta. Ossaim, por sua vez, é o orixá que detém o poder das folhas, aquele que cura, que protege. Ambos vivem à margem – por força e poder. São figuras que desafiam o controle, que escapam das regras, que representam o saber ancestral.

Essa conexão reflexiva entre Saci e Ossaim nos convida a olhar para o folclore com outros olhos. A infância brasileira, muitas vezes marcada por personagens importados e estereótipos coloniais, precisa reencontrar suas raízes.

O Saci não é apenas uma travessura – ele é memória, resistência, sabedoria. E ao refleti-lo de Ossaim, percebemos que há uma linhagem de força e conhecimento que atravessou o Atlântico para florescer nas matas brasileiras.

Em tempos de globalização, onde o Halloween ocupa cada vez mais espaço nas escolas e na mídia, lembrar do Saci é um ato de resistência da arte-educação. É uma estratégia de afirmação valorosa de nossas histórias, da riqueza de nossa cultura, e de que nossas crianças merecem se ver como protagonistas – e não como meras espectadoras de histórias que negam suas raízes.

Valorizar o Saci é reconhecer que há saberes que não cabem nos moldes ocidentais, que há espiritualidade na mata, que há força na diferença. E que, no redemoinho do tempo, o Saci continua correndo – não para fugir, mas para lembrar quem somos. É memória, resistência e imaginação. E merece continuar correndo livre pelos redemoinhos da cultura brasileira.

Sobre a autora

Waldete Tristão é doutora em Educação pela USP, pedagoga e mestra pela PUC-SP. Foi professora e coordenadora pedagógica na rede municipal de São Paulo, é escritora de livros infantis, consultora do CEERT em equidade racial na educação básica e professora no curso de Pedagogia do Instituto Singularidades.

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