Por Marcelo Lino Jr. Edição: Hysa Conrado.

Tainá Farrielo e Yvone Duarte./Crédito: Arquivo Pessoal
Muito mais do que modalidades esportivas, as artes marciais são ferramentas poderosas de transformação pessoal e social. A antropóloga e mestra em psicologia social Tainá Farrielo, 35, é faixa preta em jiu-jitsu e conta como a prática do esporte foi importante para superar um episódio de violência que sofreu.
“Eu passei por um abuso aos 16 anos e foi na luta que vi a possibilidade de entender o que nosso corpo é capaz de fazer, principalmente enquanto mulher”, conta Tainá, que é moradora do Campo Limpo, na Zona Sul de São Paulo.
Quem amarrou sua faixa preta, em maio deste ano, foi Yvone Duarte, 62, a primeira mulher a se tornar faixa coral da história do jiu-jitsu. Professora, psicóloga e também cientista social, Yvone treina desde os 16 anos.
“Claro que eu sinto uma satisfação de eu não ter sido interrompida e ter ultrapassado várias barreiras que apareceram na minha vida. Mas eu também sinto uma angústia muito grande de ver que muitas mulheres da minha geração pararam nessas barreiras”, conta Yvone.
Os desafios na construção de espaços inclusivos
Este ano, o Campeonato Brasileiro de Jiu-Jitsu chegou a um recorde de inscrições e, embora haja uma expansão nas academias do Brasil, nem todas as pessoas se sentem à vontade para ingressar no esporte.

O projeto Piranhas Team atuou no Rio de Janeiro e em São Paulo./Crédito: Arquivo Pessoal
Halisson dos Santos, advogado de 48 anos, foi um dos fundadores do grupo Piranhas Team – Defesa pessoal para Mulheres e LGBT’s. O projeto atuou no Rio de Janeiro e em São Paulo, entre 2016 e 2024, e oferecia aulas de krav maga e jiu-jitsu gratuitamente.
Desde a criação, o grupo enfrentou dificuldades para implementar o projeto nas academias. Entre os problemas, houve situações hostis e comentários depreciativos. Em uma das escolas de krav maga, eles foram convidados a se retirar com a justificativa de que o Piranha’s Team levava pessoas que “não se vestiam de maneira adequada”.
“Os instrutores [de outras instituições] não gostavam. Porque, segundo eles, o lugar ficou marcado como sendo o ‘lugar da aula para viado’, conta Halisson.

Ana Jovanovic e Yvone Duarte./Crédito: Arquivo Pessoal.
A atriz Ana Jovanovic, 53, é uma mulher trans e foi aluna do projeto no Rio de Janeiro. Ela começou no esporte aos 45 anos e diz que percebia os olhares e a zombaria no início, mas o medo não foi suficiente para impedi-la. A recepção no Piranha’s Team foi importante, assim como a confiança que o esporte trouxe para ela.
“A evolução é gradativa. Primeiro eu tinha medo de ir para o rola [enfrentamento] e depois estava lá, me desafiando. É algo que muda nossa postura. Só pelo fato de ser praticante, passamos a nos comportar e nos posturar de maneira diferente. Parece que no dia a dia isso afasta os agressores”, relata Ana.
Para ela, o ambiente construído pelo Piranha’s Team foi essencial para sua permanência no esporte e até hoje é um diferencial. Convidada a fazer parte de outra academia, não se sentiu à vontade.
“As pessoas podem se aproveitar na maldade, te bater, te lesionar. Mas também tem o assédio sexual, por ser esporte de contato. Mesmo eu curtindo muito, sei que é um território um pouco melindroso”, desabafa Ana.
Em São Paulo, no Jardim Rosana, Zona Sul, o professor de jiu-jitsu Jonatan William, 30, ensina a modalidade no Instituto Diamante Bruto, projeto social que busca atender pessoas periféricas.
“Existem muitos projetos [como o nosso], mas não têm visibilidade, não tem suporte, nem mesmo a informação de que existimos chega nas pessoas”, afirma o professor, que também oferece aulas de boxe e diversas oficinas culturais.

Jonatan William e Jonatas Samambaia estão à frente do Instituto Diamante Bruto, projeto social que busca atender pessoas periféricas./Crédito: Arquivo Pessoal
Responsável pelo instituto, Jonatas Samambaia, 39, ressalta que é necessário segurança e conscientização para trazer o público LGBT às academias de jiu-jitsu.
“Como homem preto, afirmo: o tatame é um lugar extremamente machista, preconceituoso e racista. Além das mulheres, o público LGBTQIA+ também é alvo da violência”, destaca.
Para Lany Silva, lutadora profissional de MMA, o ambiente também foi um problema em seu começo no jiu-jitsu. Praticante de muay thai desde os 13, aos 15 anos ela iniciou a nova arte marcial em Paripe, no Subúrbio Ferroviário de Salvador, região onde nasceu, mas não conseguiu evoluir no esporte.
“Fiquei quatro anos na faixa branca porque fazia e parava. Eu era muito iniciante e só rolava com cara pesado, tomava muitos amassos”, conta.
Em 2024, Lany conheceu André Mascote, lutador de MMA do UFC, que a levou para a academia de jiu-jitsu Ns Brotherhood, em Guarulhos, Região Metropolitana de São Paulo.
“Comecei a treinar na Brotherhood, onde tinham muitas mulheres na academia, mestras mulheres, aí eu nunca mais parei. Ali senti que treinava mais, tinham meninas do meu nível, mais graduadas que eu e isso me motivou”, conta Lany.
Hoje, aos 22 anos, ela é faixa marrom e campeã do LFA (Legacy Fighting Championship).
Saúde e defesa pessoal
A dificuldade de acesso ao esporte não apenas limita oportunidades, como também causa impactos negativos na saúde e no bem-estar das pessoas excluídas.

Lany Silva é lutadora profissional de MMA./Crédito: Arquivo Pessoal
Um estudo feito por pesquisadores da Socesp (Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo), demonstrou que há maior incidência de hipertensão entre mulheres pretas e pardas. Além disso, entre elas, a prática de atividade física e o consumo de alimentos saudáveis também são menores – fatores diretamente associados ao desenvolvimento da doença.
“Existem vários marcadores sociais que vão distanciando a gente dos esportes. O jiu-jitsu é muito potente, mas não é socializado para todo mundo. Geralmente, quem tem acesso a essas práticas são determinados grupos sociais”, diz Tainá Farrielo.
Ela ressalta que, com o aprendizado da defesa pessoal, os praticantes da modalidade também transformam sua relação com o mundo. “Mas não se pensa nisso coletivamente. Não se constrói espaços de uma forma que seja bom para todo mundo”, afirma.
Lany Silva também encara o esporte como um importante aliado na autodefesa.
“O jiu-jitsu é essencial em relação à defesa pessoal porque o contato físico ali é bem parecido com o de se alguém vier abusar de você. Você consegue se debater, empurrar, correr. Se você nunca viveu esse tipo de situação, você vai travar”, afirma.
Esporte como ferramenta de educação
Tainá Farrielo, agora como cientista social, reflete sobre os obstáculos no trabalho de inclusão no jiu-jitsu: “Não basta o trabalho individual e técnico, a gente precisa trazer o diálogo, dar nome às coisas, saber que não existe neutralidade nesse campo, é política.”
Para Yvone Duarte, também é preciso haver mudanças na maneira como o esporte é visto socialmente.
“Falando de modo geral, ainda se utiliza o esporte como método punitivo. Tirou nota baixa? Os pais tiram do esporte. Quem chega atrasado o professor pede para ‘pagar’ 20, 30 abdominais. Isso não existe. Essa ideia punitiva vem de uma educação física militarizada, onde tudo se resolve com punição. A gente tem que trabalhar de outro modo para educar, para tornar o ambiente agradável, tornar lazer, fazer com que as pessoas gostem. Não é meramente para ganhar músculo”, destaca.
Yvone Duarte também desenvolveu projetos de inclusão no esporte, articulando aulas de defesa pessoal para pessoas indígenas na UFRR (Universidade Federal de Roraima), em Boa Vista, sua cidade natal, e para pessoas LGBTQIA+ e de baixa renda na UnB (Universidade de Brasília).
Apesar de enxergar um avanço considerável na popularização do jiu-jitsu, para ela, muitas ações ainda precisam ser feitas.
“Eu tenho feito uma luta quase solitária de colocar o esporte nas universidades públicas. O alcance do esporte de um modo geral no Brasil sempre foi muito elitista. Estamos perdendo gerações de grandes talentos porque não houve oportunidades de ingresso”, afirma Yvone.