“Muitas pessoas saíram daqui pra cidade e hoje vivem nas favelas, aglomeradas, dependendo de salário”.
Essa fala foi feita pelo seu Zé Rodrigues, agricultor e importante liderança quilombola de 62 anos, logo no primeiro dia em que chegamos ao Ivaporunduva. A equipe da Periferia em Movimento deixou as quebradas da cidade de São Paulo para visitar esse quilombo do século 17 onde vivem cerca de 500 pessoas, no município de Eldorado (interior paulista).
Mais de 300 quilômetros separam nossos territórios, que se distinguem por um ser urbano e outro rural, um sobrevivendo em meio à lógica da branquitude na cidade do capital e outro resistindo aos processos de colonização na terra natal do atual Presidente da República. Mas essa aparente distância é menor do que a constatação do que há em comum entre nós.
Às vésperas dos 134 anos do que quilombolas chamam de falsa Abolição da Escravidão, que se completam nesta sexta-feira (13/5), nos fica o aprendizado de que a liberdade não é dada. Ela é conquistada – no enfrentamento direto com os senhores e sinhás, no cuidado com a terra, no acesso ao alimento, na preservação da história e da memória e na organização para seguir atualizando as demandas de luta e manter um modo de vida.
Este relato, que costura as percepções em texto e fotos de diversas pessoas, não busca romantizar o “escambo” que fizemos. Pelo contrário. É uma escrita e uma fotografia que dialogam e tentam reproduzir o que atravessou, atravessa e continuará atravessando concreta e subjetivamente a todes nós.
“Todo corpo negro é um terreiro de memórias”
[Laís Diogo] A frase acima eu ouvi em 2017, dita pelo Babalorixá Rodney Willian. A caminho do Quilombo Ivaporunduva, essa frase não saía da minha cabeça. Era como se meu corpo e minha alma soubessem para onde eu estava indo. E digo mais: eu estava com saudade desse lugar que ainda estava para conhecer.
Ao chegar no quilombo, as primeiras impressões foram de reconhecimento e de dor, por saber que aquele lugar com paisagens maravilhosas e contato máximo com a natureza foi também um espaço de dor e sofrimento, onde pessoas escravizadas foram levadas ao ápice da humilhação.
Mas ao conhecer pessoas como o seu Zé Rodrigues, a dona Neire Alves e o seu Setembrino Marinho, isso me conectou com uma Laís em algum tempo e espaço que eu nem fazia ideia que existia. Conhecer a fartura, o orgulho das vivências, sempre com muito cuidado e reverência a quem veio antes…
[Karina Rodrigues] Conectar a periferia de São Paulo a uma região de resistência quilombola é de extrema importância para compreender a história da nossa própria quebrada e do nosso povo, a história não-branca, decolonial.
O Quilombo de Ivaporunduva foi fundamental para a construção de outros quilombos na região. Diferente de outras comunidades, como a República de Palmares, esse quilombo não se formou como refúgio criado por pessoas escravizadas que fugiam. Aqui, era uma fazenda. E a escravocrata viúva (dona Maria Joana) teria adoecido e ido se tratar em Eldorado (ou talvez voltado com as riquezas para Portugal), onde teria morrido abandonando suas terras e uma população negra, sem deixar herdeiros.
Isso teria acontecido no início do século 17, mas é secundário. Pessoas então escravizadas estavam livres e, para manter a liberdade, lutaram por ela. A história do quilombo é contada pelas travessias de barco no rio Ribeira de Iguape, por onde organizaram estratégias de resistência de maneira inventiva, em que a igreja católica construída pelos colonizadores era esconderijo para homens armados e o sino era utilizado para comunicar a presença de invasores.
Apesar dessas histórias não estarem nos livros aos quais temos acesso, as memórias se mantêm vivas por meio da oralidade, passam de geração para geração e se materializam nas práticas comunitárias e nos mutirões que simbolizam uma luta que perpassa os caminhos da falsa Abolição.
Alimento
A agricultura de subsistência é a base da população quilombola local, que trabalha na roça por meio das práticas ancestrais do manejo ecológico do solo, consorciando os cultivos, integrando espécies nativas, preservando as sementes e organizando mutirões de reflorestamento, mantendo preservada a maior área de Mata Atlântica do país.
[Thiago Borges] Ainda que em contextos diferentes, percebi uma conexão com a história da minha família e de tantas outras famílias que conheço, de retirantes ou descendentes de quem saiu da zona rural em suas terras de origem rumo à cidade grande. Assim como seu Zé e outras famílias do Ivaporunduva, também vieram de uma lida pesada na enxada cavoucando a roça, conhecendo o mato, com apego às tradições e pouca presença do estado.
[Aline Rodrigues] Visitamos Marina Furquim, 65 anos, que nos ensinou a receita de banana frita ao mesmo também nos convidou ao resgate ancestral de muites de nós que plantavam e colhiam seu próprio alimento e que cozinhavam no forno à lenha. Marina contou que não é simples a vida por lá. Tem rotina dura, de cuidado com a terra, com a casa, com a família.
Mas Marina partilha a possibilidade de não depender só do gás para cozinhar os alimentos. Na área onde fica a casa onde dorme e tem uma cozinha mais parecida com a minha, há uma construção de barro onde fica o fogão à lenha em prepara a maioria das refeições, salvo dias de chuva forte. Lembrei de histórias que tenho ouvido na quebrada, de pessoas que têm cogitado construir um fogão à lenha para driblar o valor alto do botijão de gás. Provável memória de tempos outros, algo que para a quilombola ainda é uma realidade rotineira.
Ao lado desta mulher, estava João Francisco dos Santos Furquim. O adolescente de 14 anos é seu neto e se aproximou de nós, topando fotografar parte do nosso dia. João nos acompanhou na volta para a pousada e almoçou com a gente naquele dia, contou da distância para a única escola da região – uma escola quilombola que atende a 8 comunidades e fica no quilombo André Fernandes.
Falei pouco com Cecília, a matriarca da casa de João e mãe de Marina. Já com seu olhar e seu sorriso, Cecília me acolheu um tanto, convidou para um almoço na próxima visita que fizéssemos. Conhecer 3 gerações quilombolas foi uma oportunidade entre várias que tive por lá de reforçar o quanto é importante manter viva tradições de um povo ao mesmo tempo em que se aperfeiçoam os caminhos possíveis de se viver e de se conseguir acesso aos nossos direitos básicos e fundamentais.
Nas periferias da cidade de São Paulo, ainda ficamos horas na UBS, na UPA e no hospital para conseguir atendimento e outros cuidados e tratamentos necessários. No Quilombo Ivaporunduva, o atendimento médico no local só é possível a cada 15 dias e mesmo assim com muitas restrições. Por outro lado, quem mora lá tem muitas receitas de remédio que a natureza dá e possibilidades de colher as ervas e plantas que precisa no gigante quintal compartilhado com toda a comunidade.
[Karina] Os saberes da natureza possibilitaram a permanência de quilombolas na região, atravessando momentos de crises sanitárias e a falta de assistência da saúde pública por muitos anos. As tradições das raízes, das ervas e garrafadas (cordiás) são preservadas pela oralidade e também pela figura de benzederos e curandôs que dominam as práticas medicinais.
Ancestral
[Laís] Fomos com intenção de encontrar religiões de matriz africana, quando na realidade a única memória que quilombolas de Ivaporunduva têm é o cristianismo, mas que não é o centro da vida, como ensinado pra gente. Fazem da forma que a ancestralidade ensina, colocando componentes negros, junto com a igreja deixada e ensinada pelo colonizador e que é preservada como documento da existência dessa comunidade.
[Rafael Cristiano] Uma trilha, chamada “trilha do ouro”, onde foram enterrados os ancestrais. Vejam, a palavra ancestralidade já tão surrada e esvaziada aqui ganha um contorno direto e simples, é gente morta. E no local onde essa gente morta foi enterrada, seu Setembrino vai quando está triste para que possa retomar a vontade de viver. “É algo que não se explica. Mas só de falar eu tô todo arrepiado. Tá vendo?”. Ele narra e mostra o braço.
Nesse recorte que faço, me interessam as aparições. Seres que desafiam a linha do que existe e do mistério. As bruxas no telhado, que cochicham e ficam à espreita para roubar criança não batizada. Se você xinga a bruxa enquanto ela está no telhado, ela cai e se transforma em gente, mas você deve levá-la pra dentro de sua casa e criá-la.
O som do pilão quebrando arroz, dentro da igreja de pedra construída no século 17, toda sexta-feira santa se ouve. Por isso ninguém se aproxima da igreja sexta santa. Talvez ancestrais venham trabalhar nesse dia, mas quem paga pra ver? “Isso não é lenda”, reforça dona Neire.
Tem a galinha ciscando no chão; o mato que parece só mato, mas na verdade é aruca que cura estômago; cana do brejo para diarreia de barriga; erva de macuco, erva de santa maria, capeba e são simão. E do lado, em cima de uma casa de pau a pique com fogão à lenha, que fica do lado de uma de alvenaria com um fogão 4 bocas e botijão de gás, estão pousadas duas bruxas, que observam uma menina e um adolescente tirando fotos com uma câmera fotográfica digital.
Do lado da ponte feita de madeira e barro, perto da placa do Governo que anuncia um empreendimento de uma nova ponte de alvenaria que será entregue ainda esse ano, uma chama pairando no ar ilumina a menina que acabou de sair da venda com um doce na mão, e na outra o celular do mãe, que pediu que ela devolvesse assim que chegasse, porque ela precisa mandar um ZAP no grupo articulado dos quilombos da região.
É fina a linha. É como as estrelas por trás das outras, borrões claros e pontos luminosos. A tal da Via Láctea. Visível, mas para isso é necessário que apaguem-se os celulares e se afugente o candinheiro pairando no ar. Não sabia que dava pra ver a via Láctea daqui.
Organização
[Karina] A história do Quilombo de Ivaporanduva, é portanto a história do rio, da terra, das matas, das sementes, da comida compartilhada e sobretudo da liberdade, onde as relações políticas são descentralizadas, e a organização horizontal e coletiva.
[Laís] O quilombo não vive uma lógica de acumulação, mas cuidam para que todo mundo tenha sua renda e até se dividem nas atividades turísticas, fazendo o dinheiro girar. A plantação de banana, as feiras e o turismo garantem isso. “Na cidade, se a gente não tem dinheiro, morre de fome. No campo, não. Comida não falta”, disse o professor Elson Alves.
A socialização que aprendemos na cidade grande, formar família e ser alguém são lógicas capitalistas e a partir de uma ótica europeia. No quilombo, vimos que o cuidado com as crianças, com as pessoas mais velhas e com a terra é de responsabilidade de todes e ensinado de geração a geração. Nada passa batido e desconhecido. Até o menor matinho tem sua importância e cuidado necessário.
As mulheres com quem conversei têm autoestima, se entendem e realmente são lindas. As crianças são cheias de si, com falas fortes, sem titubear, sem medo de gritar. As pessoas mais velhas não aparentam a idade que têm, são joviais e cheias de vida. Seu Vandir, o Di Lé, caminhou com a gente pelo mato e pela Caverna do Diabo esbanjando vitalidade no auge dos 70 anos.
[Thiago] Não podemos romantizar nem generalizar, mas é importante relacionarmos com o que vivemos. Assim como no quilombo, na quebrada o estado também é omisso. Porém, a enxada desaparece, o mato dá espaço a novas moradias e os encantados ficam guardados na memória de quem conviveu com eles no passado.
Pra gente, que é de uma geração filha ou neta desses retirantes, isso é fragmento. Fragmento de um passado, uma história, que a gente tenta ressignificar diante dos desafios que a vida às margens da cidade nos impõem. E fragmentam nossas lutas também, que se encaixotam nas diferentes divisões que fazemos ou temos de fazer para sobreviver nesse sistema: a hora de estudar, a hora de trabalhar, a hora de viver a espiritualidade, a hora de se divertir, a hora de conviver com familiares ou amigos.
Diferente de milhões de pessoas que deixaram o campo, com suas razões, quem ficou nos quilombos – ou no Ivaporunduva, especificamente – ficou com objetivo de garantir esse modo de vida, preservando a natureza e os encantados, tirando folha do mato pra curar e plantando o alimento que vai na janta. A vida se dá por inteiro, não é fragmentada.
Plantar, colher, pescar, fritar, cozinhar, desfiar a fibra da bananeira, tear a esteira, rezar, dançar, cantar, buscar a folha no mato pra cuidar das quebraduras, rachaduras e machucaduras só são possíveis porque há um território que permite que todas essas práticas e relações aconteçam. É território forjado em cima de sangue e de desejo de liberdade, que não é um fim em si mesmo.
A terra está sob risco constante, com tentativas de dominação ou expulsão. Para garantir essa liberdade e esse modo de vida, o quilombo nos ensina que é essencial garantir a terra. E que terra a gente tem nessa periferia urbana, nessa borda da cidade, sempre sob ameaça? Viver é lutar. E criar quilombos é a única forma de seguirmos inteiros, inteiras, inteires nessa vida.
Relatos de Aline Rodrigues, Laís Diogo, Karina Rodrigues, Rafael Cristiano e Thiago Borges. Captação e edição de fotos de Pedro Ariel Salvador e Vitori Jumapili. Captação e edição de áudio de Paulo Cruz. Design de Rafael Cristiano. Edição de texto de Thiago Borges. Orientação de Gisele Brito. Distribuição por Vênuz Capel. “Escambos Periféricos – Da quebrada ao quilombo” é uma atividade que aconteceu no âmbito do Repórter da Quebrada – Uma morada jornalística de experimentações, projeto da Periferia em Movimento realizado com apoio do Fomento à Cultura da Periferia da Secretaria Municipal de São Paulo
Redação PEM, Aline Rodrigues, Karina Rodrigues, Laís Diogo, Pedro Salvador, Rafael Cristiano, Thiago Borges, Vitori Jumapili
1 Comentário
Adorei conhecer o grupo de corrida Corre Kilombo.
Moro na cidade Líder em Itaquera.
Tenho 59 anos, e hoje me encontro sedentária, mas sempre amei esporte.
Parabéns pela iniciativa, amei a reportagem.
Me incluam também.
💜💜🌻