Em meio aos desmontes na cultura, festival leva arte a crianças na periferia da Zona Leste de SP

Em meio aos desmontes na cultura, festival leva arte a crianças na periferia da Zona Leste de SP

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Tempo de leitura: 9 minutos

Por Paula Sant’Ana. Edição: Hysa Conrado.

Promover cultura nas periferias é um desafio constante. Apesar disso, algumas iniciativas seguem resistindo e atuando independentemente desse cenário. Quando o foco são crianças na primeira infância, os obstáculos aumentam, exigindo cuidado especial diante das necessidades específicas dessa fase.

Com o apoio do ProAC (Programa de Ação Cultural), a terceira edição do Festival No Caminho do Brincar acontece nos dias 15 e 17 de agosto, no Teatro Flávio Império, no Cangaíba, Zona Leste de São Paulo. Promovido pela Cia Menina Fulô, o evento tem entrada gratuita e, neste ano, traz o tema “Corpos Pequenos Também Ocupam”.

Voltado para crianças da primeira e segunda infância, a programação do festival inclui teatro, dança, música e oficinas, valorizando a cultura popular e incentivando o desenvolvimento infantil. Fundada em 2018, a Cia Menina Fulô atua há mais de seis anos na região com projetos de dança e ações socioculturais que promovem a diversidade artística.

Serão oito espetáculos, quatro oficinas e rodas de conversa com foco em crianças, famílias, educadores e especialistas. A proposta destaca o direito à cultura desde a primeira infância, com atenção especial a crianças neurodivergentes e atípicas.

Festival No Caminho do Brincar ocupa o Cangaíba com arte para crianças/Crédito: Leonardo George.

Todas as atividades contam com intérprete de Libras, espaços de regulação sensorial e uma equipe dedicada a tornar as experiências mais inclusivas e acolhedoras. Em setembro, o festival será expandido para escolas públicas de Diadema e Mauá.

“O No Caminho do Brincar surge dessa ideia de aprofundamento, de um evento que reúna e dialogue com outros grupos da quebrada que produzem para crianças. E não apenas com foco em entretenimento, mas em pesquisa e no entendimento da infância como fase transformadora do espaço urbano”, explica Danielle Rocha, 37, produtora executiva do festival e moradora de Itaquera, na Zona Leste de São Paulo.

Arte e infância

A primeira infância vai dos 0 aos 6 anos, subdividida em primeiríssima infância, que corresponde dos 0 aos 3 anos. A segunda infância compreende o período entre 6 e 12 anos, fase inicial da adolescência. Até os 6 anos, 90% das conexões cerebrais estão formadas, tornando essa fase essencial para estímulos intelectuais, afetivos, físicos e sociais que influenciam o desenvolvimento futuro.

“A produção para a infância é árdua e pouco valorizada pelo mercado. Muitas vezes, querem enquadrá-la em um lugar de menor custo e importância. Mas é justamente na infância que se forma a base da sensibilidade artística”, pontua Danielle, que também é atriz, dançarina e produtora cultural.

Além disso, ela destaca a complexidade que é produzir um evento cultural para os pequenos. “Eu penso que o maior desafio em ser pesquisadora e artista das infâncias é se desconstruir. É abandonar nossos egos adultos e escutar a criança. Entender que, para produzir algo para a infância, é preciso primeiro olhar nos olhos dela”, afirma.

Desmonte na cultura

Agentes culturais têm acusado a Prefeitura de Ricardo Nunes (MDB) de promover um desmonte dos programas que formam artistas nas periferias de São Paulo. Em nota enviada à Periferia em Movimento no mês de abril, a SMC-SP (Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa de São Paulo) negou a acusação.

A pasta destaca que o município oferece programação voltada para as crianças por meio dos equipamentos culturais. Algumas das atividades oferecidas são: PIÁ (Programa de Iniciação Artística), PIAPI (Programa de Iniciação Artística para a Primeira Infância), EMIA (Escola Municipal de Iniciação Artística), salas e espaços da Primeira Infância, Férias Culturais, Praças da Cultura e Viradinha, além de programação semanal nos equipamentos.

O ator e produtor cultural Michel Galiotto, 47, acredita que as ações municipais voltadas para a cultura enfrentam dificuldades operacionais que afetam diretamente as crianças e famílias atendidas.

“As políticas da secretarias de cultura são conceitualmente interessantes e funcionam como pedagogias complementares à educação. No entanto, são pouco institucionalizadas. O poder público tem adotado critérios cada vez mais clientelistas e menos técnicos”, avalia.

Para o produtor cultural, que tem 18 anos de atuação na área, há um processo crescente de precarização.

“Os atrasos e descaracterizações dos editais causam prejuízos significativos às crianças, famílias e à classe trabalhadora, os artistas-educadores. Aliás, desde que a secretaria incorporou o termo ‘Economia Criativa’ ao seu nome, coincidentemente passou a tratar seus trabalhadores com ainda mais precariedade”, afirma Galiotto.

O PIÁ é voltado a crianças e adolescentes de 6 a 13 anos, realizado em equipamentos da SMC, CEUs, entre outros espaços. Já o PIAPI atende bebês e crianças de 0 a 6 anos, com foco na valorização das culturas da primeira infância, criação de afetos, descobertas e experiências estéticas e lúdicas, por meio da troca entre artistas-educadores, crianças e famílias.

“As políticas públicas ainda são insuficientes, principalmente considerando o tamanho e a diversidade das periferias. Uma periferia não é igual à outra. Há muito a ser melhorado, e é possível fazer isso: basta vontade”, afirma Carolina Portella, 34, atriz, autora juvenil e produtora cultural.

Participando de sua sexta edição no PIÁ, Carolina também atua como arte-educadora e palhaça. Ela ressalta a importância do pensamento coletivo no acesso das crianças às atividades culturais.

“Já vi situações em que a criança teve que deixar o PIÁ por falta de alguém que a levasse. Antes de tudo, essa criança precisa de uma estrutura básica para conseguir acessar a cultura, os programas, as políticas públicas. É uma dependência coletiva”, destaca.

Mais sobre o festival ‘No Caminho do Brincar’

Festival No Caminho do Brincar./Crédito: @maikestein

O festival conta com uma sala de autorregulação, voltada a crianças que necessitam de pausas, silêncio ou estímulos reduzidos. Parte da programação conta com intérprete de Libras, ampliando o acesso a crianças e famílias surdas.

A estrutura também foi adaptada para cadeirantes, com rampas, banheiros acessíveis e deslocamento seguro. A equipe do festival também participou de uma formação em acessibilidade cultural, reforçando que o acesso vai além das estruturas físicas e envolve acolhimento e comunicação.

A diretora de espetáculos para as infâncias Veronica Avellar, 39, moradora da Vila Ivone, na Zona Leste de São Paulo, e uma das idealizadoras da programação fala das dificuldades de realizar um evento desse tipo.

“Produzir um festival para as infâncias em um território periférico é, antes de tudo, um ato de resistência”, afirma.

“O maior desafio que enfrentamos é a ausência de políticas públicas contínuas que realmente fomentem, incentivem e valorizem as criações artísticas voltadas para as infâncias – especialmente quando essas criações nascem e acontecem nas periferias”, diz.

Programação:

15/08, sexta-feira

11h – Oficina Em cores, desenhos e forma (1h30), com materiais como argila, areia, carvão e giz de cera, baseada na técnica italiana segni mossi

15h – Espetáculo Dança Dentro, da Cia Menina Fulô (45 min), que explora os primeiros gestos da vida e o brincar como ritual poético

16h – Roda de conversa Capacitismo no mundo das artes, com Emerson Piqueno e Gustavo Ferreira (1h30)

 

17/08, domingo

10h – Oficina de construção de boneco cabeção, com o grupo Sucatas Ambulantes (1h30), utilizando técnicas de papietagem

11h30 – Espetáculo Tecendo Histórias, da Cia Quatro Ventos (40 min), com contos africanos e narrativa poética

13h30 – Exibição do documentário “PAITEA”, seguida de roda de conversa com o diretor Emerson Piqueno (2h30)

Endereço: Rua Professor Alves Pedroso, 600, Cangaíba – São Paulo (SP)

Para conferir todos os detalhes e retirar os ingressos (que são gratuitos), basta acessar a página no site do Sympla. Confira também o Instagram @nocaminhodobrincar.

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