Por Thiago Borges. Arte: Rafael Cristiano
“É pior que crack”, diz um adolescente durante uma conversa na praça do Jardim Myrna, Grajaú (Extremo Sul de São Paulo). O jovem se refere ao K9, como é chamada uma das mais de 300 variações do canabinóide sintético, que ganhou visibilidade recentemente. Apesar de nunca ter utilizado, o adolescente define a substância após ter presenciado um conhecido sob a brisa da droga – cenas do tipo são compartilhadas nas redes sociais e ganham espaço em programas de TV, que falam em “efeito zumbi”.
Entretanto, para lidar com a questão, é preciso tirar o sensacionalismo da frente.
Essas substâncias sintéticas feitas clandestinamente circulam desde o início dos anos 2000, mas a popularização entre a juventude periférica tem se refletido numa pressão aos serviços de saúde.
“A gente tem recebido vários casos de adolescentes com uso bastante intenso e problemático, mais especificamente de 2 meses pra cá”, explica Gabriela Galvão, psicóloga no Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (Caps IJ) Piração, localizado no Jardim Novo Horizonte, também no Grajaú.
O serviço ligado à Prefeitura paulistana é responsável por lidar com crianças e adolescentes com algum sofrimento mental, inclusive causados pelo uso de substâncias. Como a demanda relacionada à dependência química é minoritária, o fluxo recente tem chamado a atenção. “Se esses casos têm chegado aqui, a gente fica se perguntando sobre todos os outros que não chegam”, diz ela.
Em nota enviada pela assessoria de imprensa à Periferia em Movimento, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) da Prefeitura de São Paulo, administrada por Ricardo Nunes (MDB), informa que registrou 245 casos suspeitos de intoxicação por canabinóides sintéticos na cidade, apenas nos primeiros meses deste ano. Em todo ano de 2022, foram 98 notificações.
A reportagem também tentou contato com o Governo do Estado, chefiado por Tarcísio de Freitas (Republicanos), mas não obteve retorno.
Para a Prefeitura, a variedade encontrada, a falta de informação a respeito, a dificuldade de realizar exames de detecção e o baixo preço – com R$ 5 a R$ 10, é possível comprar uma dose – são fatores que contribuem para a proliferação. Segundo nota técnica publicada em 19 de abril pela SMS, jovens em situação de vulnerabilidade e que são vítimas de bullying, racismo, homofobia ou transfobia teriam risco acentuado de consumir com intensidade alguma variação das drogas K.
Para Gabriela, psicóloga do Caps IJ, é preciso ter cautela nessa definição para não gerar estigma. “Justificar o uso da substância pela vulnerabilidade é delicado. O que a gente percebe é que, neste território em específico que tem uma grande vulnerabilidade, alguns adolescentes têm chegado ao serviço com essa questão”, aponta. “As pessoas usam substâncias por motivos diversos”.
Como as drogas K funcionam?
A SMS da Prefeitura de São Paulo explica que, apesar de ter um princípio ativo similar ao da maconha cultivada naturalmente, o canabinóide sintético faz parte de um outro subtipo de droga que foi identificado em 2004 e classificado como “drogas emergentes”.
As substâncias podem conter componentes químicos como fentanil, contrabandeados ao Brasil e aqui misturados em laboratórios clandestinos com outros itens, inclusive pesticidas e até pilhas de controle remoto. A falta de controle de qualidade e a mudança constante na fórmula geram um descontrole sobre os potenciais efeitos do uso.
O líquido sem cor e sem cheiro pode ser inalado ou borrifado em outras preparações e já foi encontrado em diferentes formas, como incenso, sais de banho, aromatizadores, cristais, gomas de mascar, selos e fitas de papel ou cigarro, entre outras.
Batizada de K2, K4, K9, spice, entre outras, a droga também ficou erroneamente conhecida como “maconha sintética” por causa da aparência de uma das variações, que consiste na mistura com folhas e ervas como camomila e orégano, que são trituradas, prensadas e fumadas como a cannabis natural.
Enquanto a maconha natural não representa riscos de evoluir para uma overdose, o mesmo não se pode falar dos canabinóides sintéticos. Segundo a SMS, o uso da substância pode levar a náuseas, vômitos, hipertensão arterial, convulsões, arritmia cardíaca, acidentes vasculares, insuficiência renal, contrações involuntárias dos músculos, dores difusas e perda de consciência.
Segundo a SMS, os canabinóides sintéticos estão associados a um maior nível de tolerância no sistema nervoso, que podem levar a uma intoxicação aguda. Além disso, há outros quadros que podem levar a ideação suicida, paranoia, alucinações, agitação, ansiedade, pânico, agressividade e evitação social. Já a abstinência pode causar desconfortos, taquicardia, dores de cabeça e alterações de humor, entre outros sintomas.
A quem recorrer?
A nota técnica da SMS orienta os serviços de saúde do município de São Paulo sobre o protocolo de atendimento, sobretudo a crianças e adolescentes. A pasta indica um atendimento humanizado e acolhedor, sem discursos que culpem ou criminalizem pacientes, além de fazer uma escuta atenta e qualificada para identificar os fatores sociais relacionados à situação.
Em caso de intoxicação aguda, familiar ou pessoa responsável deve procurar um serviço de emergência, como prontos-socorros, UPAs ou acionar o SAMU pelo número 192.
O atendimento vai examinar a complexidade do caso, que pode ser direcionado ao Centro de Controle de Intoxicações de São Paulo (CCI-SP), no Hospital Municipal Arthur Ribeiro de Saboya, referência da rede municipal para casos de intoxicação e que está localizado no Jabaquara (zona Sul).
Uma vez feito o diagnóstico e a desintoxicação, o caso deve ser acompanhado em programa de terapia nos 33 Caps IJ ou 35 Caps AD existentes no município. Os equipamentos também acompanham pessoas em quadro agudo de uso da substância. Confira os endereços aqui. E, quando o risco à saúde é atenuado, a Unidade Básica de Saúde (UBS) mais próxima se torna a referência no serviço.
A secretaria diz ainda que promoveu capacitação para profissionais de saúde sobre os impactos do uso dessas substâncias e estratégias de cuidado psicossocial, mas isso não chegou ao Caps IJ Piração.
“O que a gente tem feito é na perspectiva da redução de danos, com escuta, espaços de cuidado (…) A gente tá conhecendo, entendendo como essa substância afeta as pessoas e é um desafio porque a gente não sabe qual é a composição”, completa Gabriela.
Para o Centro de Convivência É de Lei, que desde 1998 atua com redução de danos associados ao uso de substâncias e à política de drogas, é possível pensar meios para amenizar os riscos a quem consome as drogas K. Isso vai desde compartilhar informações com essa pessoa até observar o ambiente para que ela não se machuque, caso já esteja sob efeito.
“Muitas pessoas podem se sentir tontas ao usar, então usar [a substância] sentade ou longe de quinas e locais que podem machucar é interessante. Usar piteira, caso vá fumar, e evitar compartilhar o cigarro”, observa Ana Luiza Uwai, comunicadora e redutora de danos na organização.
Beber água, não estar de barriga vazia e tomar cuidado com interações com outras substâncias também são indicações importantes. “Essas são algumas formas de reduzir os possíveis danos e riscos, mas é fundamental que as estratégias sejam construídas junto da pessoa, que é quem mais pode falar sobre seu uso”, diz Ana Luiza.
“O espaço, insumos e as estratégias coletivas são positivas para minimizar os riscos”, completa Astro Feraci, estudante de psicologia e também redutor de danos no É de Lei.
Disseminação do medo
As autoridades policiais e mídias convencionais que fazem propaganda das ações têm veiculado números recordes de apreensão das drogas K. Até março deste ano, o Departamento de Narcóticos (Denarc) da Polícia Civil paulista diz ter apreendido quase 18 quilos da droga – e cerca de 80% das apreensões aconteceram nos Extremos Leste e Sul da capital.
Para efeitos de comparação, em 2021 foram apreendidos 5,7 quilos e, no ano passado, 11,6 quilos. Uma única folha de papel tamanho A4 em que o líquido é borrifado pode conter até 1,2 mil micropontos ou doses da substância.
Para o É De Lei, esse tipo de ação contribui para marcar as pessoas que utilizam as substâncias.
“As apreensões recordes de drogas pelo poder policial são uma justificativa para encarcerar pessoas pretas, que estão em vulnerabilidade, como se fosse a solução”, diz Astro. “Sensacionalismo e disseminação de preconceito só afastam o diálogo e olhares de um cuidado seguro, digno e garantido”, continua.
Ana Luiza explica ainda que um dos motivos para a droga ter tantos nomes e composições é a própria política antiproibicionista, que conforme avança e torna uma droga ilegal, quem a produz muda sua fórmula para seguir vendendo. Isso impacta diretamente nas informações que se tem sobre a substância, como lidar com os efeitos e diminuir os riscos associados ao uso.
“Com a popularização do uso por jovens, principalmente nas periferias de São Paulo, isso tem sido veiculado pela mídia de maneira a estigmatizar ainda mais essa população, que já é mais visada pela polícia e sofre abordagens policiais arbitrárias, é mais encarcerada etc. São maneiras de desumanizar uma parcela conhecida das pessoas, para que sejam ainda mais alvo da chamada guerra às drogas, que na verdade é uma guerra a elas”, completa Ana Luiza.
Thiago Borges, Rafael Cristiano