No Brasil, para além da primavera, setembro traz uma anunciação: é tempo de doces. No dia 27, celebra-se São Cosme e Damião, os santos gêmeos que, nas encruzilhadas da fé, foram sincretizados com os Ibejis – divindades gêmeas iorubás. Para muitos, receber um doce nessa época é uma oportunidade de renovação: por meio das balas fazem-se promessas, pedidos de cura, simpatias para gravidez e renova-se a alegria pela vida.
Mas, ainda que o culto a essas energias esteja diretamente associado ao renascimento e à fertilidade, é comum que setembro também seja marcado por episódios de intolerância religiosa. Sacerdotes de matriz africana ouvidas pela Periferia em Movimento relatam que tem sido cada vez mais difícil distribuir os doces para as crianças.
Mãe Elis de Iemanjá, da Casa de Caridade Cabocla Yara de Oxossi, terreiro de umbanda situado na Vila Natal, na Zona Sul de São Paulo, conta que na época das festividades vai até comunidades periféricas e de maior vulnerabilidade para fazer as entregas de doces. Nesses momentos é que encontra mais dificuldade para chegar às crianças.
- Mãe Elis de Iemanjá/Crédito: Arquivo Pessoal
- Saquinhos de doces./Crédito: Arquivo Pessoal
“Na maioria das vezes, as mães não deixam as crianças pegarem. Na realidade, a maldade não vem da criança, elas não entendem tudo aquilo que está envolvido. A maldade vem do adulto que fala para a criança não pegar o doce, não comer o doce, dizendo que não é coisa de Deus”, afirma.
Mesmo localizado em frente a uma escola e sendo sempre bem recebido pelas crianças, o Ilê Asé Omo Orisá Oya Ojide também enfrenta episódios de preconceito. A casa de candomblé é comandada por Mãe Beth de Oyá e está situada no bairro Jardim Camargo Novo, no Extremo Leste de São Paulo.
“Eu faço um kitzinho de doces, monto uma mesa do lado de fora, na calçada mesmo do Ilê, e faço essa distribuição. Tem mãe que atravessa a rua para a criança não pegar. Algumas pessoas intolerantes passam na frente, sem criança, e falam: ‘sangue de Jesus tem poder’, ‘só Jesus salva’, ‘Jesus te ama’, como uma forma de repreender nossa atitude de distribuir doce. Isso é bem triste”, conta a ialorixá.
Expansão do fundamentalismo cristão
Não são as crianças que estão mais intolerantes, mas o entorno delas. Para Mãe Elis, essa dificuldade em fazer a celebração da data a partir da entrega de doces está diretamente associada à expansão do fundamentalismo cristão nas regiões periféricas.
“Em algumas igrejas evangélicas é feita uma lavagem de ideias e de intolerância. Isso passa dos pais para os filhos, e os filhos acabam não podendo participar dessa festividade. Impacta bastante e agora as igrejas têm crescido nas periferias até mais do que terreiros de candomblé ou de umbanda”, afirma.
Um levantamento do Pindograma, site de jornalismo de dados, revela que, na última década, São Paulo ganhou uma nova igreja evangélica a cada seis dias.
O crescimento foi mais intenso nas periferias, sobretudo na Zona Sul, em bairros como Cidade Ademar, Grajaú, Jardim São Luís, Jardim Ângela, Sacomã e Campo Limpo; além da Brasilândia, na Zona Norte, e d Itaim Paulista, Sapopemba e Vila Matilde, na Zona Leste. Em Cidade Ademar, a expansão chegou a 200%.

Felipe Brito./Crédito: Arquivo Pessoal
O ativista cultural Felipe Brito, doutor em humanidades e mestre em políticas públicas, ressalta que a expansão do pensamento teocrático fundamentalista cristão não está necessariamente atrelado ao aumento das igrejas evangélicas.
“Contudo, precisamos compreender que este pensamento teocrático fundamentalista, que alguns estudiosos têm chamado de teologia do domínio, compreende o discurso único, a monocracia da fé e da relação humana com a espiritualidade. Neste sentido, temos um movimento intenso de apagamento simbólico e material da presença das tradições de matrizes africanas, sobretudo nas regiões mais periféricas dos grandes centros urbanos”, explica.
Ele cita a obra investigativa “A fé e o fuzil”, do jornalista e escritor Bruno Paes Manso, que analisa o avanço do neopentecostalismo no Brasil e suas práticas de perseguição às religiões de matriz africana.
O livro relata que, no dia de São Cosme e Damião, a Igreja Universal do Reino de Deus e outras denominações distribuem balas ungidas em regiões periféricas de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo para “cortar o efeito” dos doces oferecidos nos terreiros.
“São práticas racistas e precisam ser pontuadas desta forma, pois são atos violentos e que têm como objetivo o aniquilamento destas tradições de matrizes africanas e colocá-las nesta posição diametralmente oposta ao cristianismo, em uma dualidade limitante e com fim de destruição do legado africano preservado nestas comunidades”, destaca Brito.
Apagamento das tradições afro-brasileiras

Mãe Beth de Oyá./Crédito: Arquivo Pessoal.
O ativista ressalta que o culto a Ibeji, chamado Vunji pelos povos de tradição congo-angola e presente na umbanda por meio das entidades infantis conhecidas como erês, é uma tradição de manutenção da vida.
“É o momento que as comunidades tradicionais de matrizes africanas no Brasil mostram para o mundo externo dos terreiros seu cuidado e responsabilidade com a preservação da infância como algo sagrado e intocável, invertendo a lógica de sobreposição do adulto sobre a criança como algo superior e de ordenamento. Neste momento, quem adentra as comunidades de terreiro consegue visualizar esse universo das crianças como conexão ancestral”, explica.
Para ele, o fim da tradição da entrega de doces representaria a perda da memória e do legado da contribuição negro-africana para a cultura e a história social do Brasil.
“Estamos falando de ruptura violenta com a memória ancestral dos povos africanos formadores, os ancestrais das atuais gerações. É sobre a violência do não lugar. De não estar e não ser por não saber de onde se veio”, ressalta.
Há 10 anos, quando se mudou para o bairro Jardim Camargo Novo, Mãe Beth de Oyá decidiu iniciar a sua tradição de entrega de doces como uma maneira de mostrar para a comunidade que o candomblé é uma religião de paz e garantir um convívio harmonioso.
“O doce significa alegria. Lembrar que um dia você também foi criança, recebeu aquele axé, aquela energia. Prego por dar continuidade, para mostrar às pessoas ao redor que somos do bem e também para levar cura e alegria para todos”, afirma.
- Crédito: Arquivo Pessoal
- Crédito: Arquivo Pessoal
Ela acredita que, se a celebração acontecesse apenas dentro do terreiro, os vizinhos poderiam não se sentir à vontade para participar. Por isso, ao abrir a distribuição de doces para a comunidade ao redor, compartilha sua cultura com todos que desejarem recebê-la.
“Então faço duas festividades: uma para os adeptos, para os filhos da casa, com caruru, doces, bolo, tudo, e normalmente não vêm crianças, e no dia 27 faço só a distribuição de doces. Assim posso mostrar para a vizinhança que também fazemos uma ação social”, conta.
Para a ialorixá, manter a fé em sua diversidade é fundamental para assegurar uma vida com bem-estar.
“Já aconteceu de adultos virem aqui e dizerem: ‘me dá um saquinho de doces, porque tenho um neto doente em casa, pede por ele para mim, por favor’. Acabar com isso é acabar com a fé de muitas pessoas. Vamos manter viva essa tradição para distribuir alegria nesse mundo tão triste e solitário em que vivemos.”, pontua.