Artistas trans de periferias colocam memórias e afetos na encruzilhada de Exu

Artistas trans de periferias colocam memórias e afetos na encruzilhada de Exu

No Centro da capital paulista, onde a cidade se cruza, exposição é assentamento de energia que carrega o novo. Leia a crítica de Rafael Cristiano sobre "Encruzas Afetyvas", na seção De Lupa na Arte

Compartilhe!

Tempo de leitura: 6 minutos

A premissa de um encontro com Exu¹ é a ideia de que se saia em estado de fertilidade, de gestação de algo novo. Exu é essa força que move os líquidos do corpo, do pensamento, uma esfera sem começo e fim, uma boca enorme que engole o mundo como está para cuspir um porvir. Veja bem, essa última imagem/metáfora nos servirá futuramente, então repousemos em nossas cabeças a imagem de um processo de mastigar e cuspir.

A exposição “Encruzas Afetyvas” é fruto de uma residência artística proposta pela Núclea de pesquisa Tranzborde, um “terrytoryu dissidente onde desliZan y enrrayzan produções artística”, segundo uma autodescrição. A residência tinha como premissa uma investigação coletiva conduzida por artistas orientadorus a partir do livro “Pedagogias da encruzilhada”, de Luiz Rufino.

A chamada era aberta para artistas que tinham vivência com a experiência de terreiros de matrizes afro-indígenas e que gostariam de investigar uma certa fronteira entre o rito e arte, entre o afeto, as memórias íntimas e a encruzilhada, o ponto de encontro. Todas as pessoas que responderam o chamamento são racializadas e trans.

Desse encontro com Exu nasce essa exposição, “Encruzas Afetyvas”.

Ao chegar na Oficina Cultural Oswald de Andrade, no Bom Retiro (centro de São Paulo), observamos obras posicionadas ao chão, em uma ideia oposta ao comum em museus e salas de exposição, em que há uma elevação das obras, algo na altura de nossos olhos. As obras de “Encruzas Afetyvas” estão na linha de nossos pés.

“O chão agora é boca. Devora-mundo(s). Mastiga-mastiga. Tritura lógica. Embola pedaços. Pelos cantos. Pelas frestas. Pelos becos”, nos dirá o texto de abertura da exposição sobre um tanto dessa relação com o chão.

Outro trecho nos diz:

“Invocamos aqui EXUS, POMBAGIRAS, PRETOS VELHOS, CIGANES e CABOCLES tendo a ENCRUZILHADA como ponto de partida; como princípio ético-poético-político-pedagógico-energético-espiritual-condutor de estados de PRESENÇA de corpos dissidentes dispostos a TRANZgredir quebrantos, mal-olhados, marafundas, quizilas, carregos desse UNIverso…”

Essa ideia impressa de corpos dissidentes pensando através da figura de Exu é linha interessante nesse carretel. Exu, a potência criativa, encontra corpos dissidentes brasileires. Agora, esse não é um fato estranho para Exu, que sempre encontra ao longo dos tempos corpos que receberam essa alcunha para carregar, “dissidência”.

O que há de diferente em “Encruzas Afetyvas” é a premissa de assumir que aquilo que nasce de um encontro com Exu carrega a energia dele e a nossa cara.

Uma obra que está posicionada no centro da exposição vai nos dizer isso.

“Assentamentos afetivos”, como são chamados, são o que o nome diz, um assentamento, objeto que ao receber determinadas energias deixa de ser um objeto e passa a ser a representação de uma divindade ou entidade na terra.

Quem seriam essas entidades assentadas no meio da Oficina Cultural Oswald de Andrade, no coração de SP City, exatamente no centro da cidade? Talvez as memórias de pessoas trans racializadas nesse tempo em que vivemos, a grafia desses corpos e sua pluralidade, frente à sociedade “anti-exuística” em que vivemos todes, objetos tornados representação de uma divindade ou entidade na terra, aqui os afetos desses corpos, antepassados, lembranças, brinquedos, promessas de futuro e patuás…

Está lá plantado…

Pois bem, essa obra me engoliu, não fui eu quem a vi…

Agora é um momento oportuno para recuperarmos a imagem de uma boca mastigando e cuspindo depois – uma das sensações possíveis de se sair das “Encruzas Afetyvas”. Transformades por uma mordida de Exu e, quem sabe, em estado de gestação de algo novo, um porvir.

Saio também, com uma vontade de ver outros resultados de premissas como essas que guiaram essas pessoas artistas, e com uma questão que ronda a produção afro-indígena-periférica, como o tempo e o pataco, elementos tão importantes pra sobrevivência de artistas da dita dissidência, se mais fartos o bastante para chamarmos de justos incorreria no processo de mastigação, fazendo a boca cuspir mais lento… Quase baba escorrendo.

Isso! Como escorrer pelos lábios de Exú, depois de ser lentamente mastigado?

¹ Exu é a grafia popularizada no Brasil. Em Yorubá se escreve Èsù que em tradução literal significa “esfera”

Anotaí!

Exposição Encruzas Afetyvas

Onde? Oficina Cultural Oswald de Andrade – Rua Três Rios, 363. -Centro de São Paulo

Quando? Em cartaz de 28 de outubro a 25 de novembro de 2023. Seg. à Sex., das 10h às 20h; Sábado, das 12h às 18h

Entrada Gratuita

Ficha Técnica

Artistas Oryentadorys Cura-dorys Carol Carvalho / Quebrantxy / Pedra Homem / Givva / Oru FlorydoFogo / Nu Abe 

Artistas Residentes Ayrá Yatzil / Carole Souza / Lucaz Eusébio / Myra Gomes / Vicente Kayode 

Trabalho Audiovisual e registro Nu Abe 

Trilha Audiovisual André Papi 

Expografia Oru FlorydoFogo 

Produtorus Anderson Vieira / Edan Mar / Lud Picosque 

Arte Divulgação Letícia Antônio 

Produção Tranzborde y Corpo Rastreado 

Curadoria Oficina Cultural Oswald Karina Gallo

*O autor Rafael Cristiano é designer da Periferia em Movimento, ator e dramaturgo. Formado em design gráfico pela FMU em 2012. É Ọmọ Òrìṣà de Ossanyn. Tem interesse em arte e em morrer velhinho

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Apoie!
Pular para o conteúdo