“D’água” é um espetáculo solo de dança executado pelo dançarino, diretor e coreógrafo Rodrigo Alcântara, integrante da Cia. Diário, companhia de dança que existe há 8 anos pesquisando dança contemporânea e afro-diaspórica, tendo em vista e sendo atravessada pelas realidades periféricas, ou narrativas das bordas, como é dito pelo próprio coletivo na rápida apresentação que permite o perfil das redes sociais.
O nome “D’água” me chama a atenção, inclusive inicio tecendo uma reflexão sobre o poder dos títulos, o nome como algo que ilumina.
Dito isso, a escolha de iluminar o que assistimos como o líquido que satisfaz as sedes e lava o nosso corpo, em contraste com a atmosfera seca que predomina o espetáculo, me chama a atenção.
O espetáculo inicia com o espaço vazio. Nos quatro cantos, dispostas de forma milimétrica, estão diversas taças, copos e jarras cheias d’água, [Há algo de arena ritualística nisso].
Ouvimos um áudio enviado por whatsapp. Parece duas pessoas com uma proximidade afetiva. E de forma ritmada, compondo uma coreografia que rompe o que pode parecer cotidiano, surge, com uma imensa mochila nas costas, o intérprete. A partir disso, inicia-se uma espécie de narrativa onírica e sensitiva sobre uma necessidade de transformação da realidade.
Mas do poder do título: a água neste trabalho surge como o símbolo-veículo dessa transformação.
Durante o trabalho, em que o intérprete parece querer completar vazios, a água está em seu lugar de contida por essas diversas taças para em seguida aparecer como força e ação. Ela é convocada e vista como um verbo.
As pessoas são convidadas a banhar o intérprete, que se entrega às águas, banha seu corpo, mata sua sede que parecia sem preenchimento. É uma bonita imagem essa.
Beleza, inclusive, é um conceito que me parece aplicado à obra, pensando na beleza como uma organização estética para causar uma espécie de encantamento. Nos passos marcados, nas taças tão bem organizadas, na troca em uma relação que oras aprofunda, oras volta à superfície, em entregas que parecem ter um significado muito íntimo pro intérprete, a beleza está presente.
A água é convocada e vista como verbo…
Em um determinado momento, a própria estrutura de solo começa a se desmanchar [a água move as coisas do lugar], e uma outra presença se anuncia por uma luz lindamente desenhada.
A artista Natania Borges, uma cantora soteropolitana, travesti de voz muito alinhada a esse conceito de beleza que citei, rasga a cena com seu canto, um canto que invade o espaço, vai ganhando força, muda a arena, muda o dançarino.
Fiz algumas conexões com a deusa iorubana Osun, na real conexão com várias divindades de diversas regiões da África – Yemonja, Dandalunda, Kaiala, Mama Uata. Quase todas sempre ligadas a como organizamos as nossas emoções e pensamentos, como mudamos de lugar, como repensamos nossa geografia afetiva. [a água move mesmo as coisas do lugar.]
Inclusive os solos contemporâneos, que parecem muito alinhados com a avante ideia neo-liberal nas artes, que nos empurra para uma cena ensimesmada, têm muito a aprender com a contribuição de coletividades artísticas periféricas na construção de seus solos.
É visível que estamos de frente para um espetáculo criado pela coletividade, pela Cia. Diário, pensado na fricção de ideias convergentes e divergentes. Inclusive, um salve ao coletivo por se manter em pesquisa nesses 8 anos.
Enfim…
A figura solitária criada pelo intérprete, que parece muito ligada às vivências dele, de suas observações, das experiências de ser um artista periférico vivendo este tempo, essa figura passa por uma transformação, depois da passagem de Natânia.
Mas não a vemos, não somos testemunhas do que seguirá, apenas sabemos, de alguma forma, que algo muda depois da água nos invadir e rearranjar a mobília interna que nos compõe.
Após os agradecimentos, somos convidados a beber das águas que assim como nós testemunharam o ato.
Eu bebi…
Apresentação prevista
Quando? Sábado, 31 de maio, às 20h
Onde? R. Barão de Campinas, 529 – Campos Elíseos – SP
Duração: 45 minutos
Classificação indicativa: 12 anos
Ficha Técnica
Interpretação: Rodrigo Alcântara
Direção, Dramaturgia e Preparação Corporal: Sofia Serafim
Produção Executiva: Camila Silva
Produção Operacional e Cantora Convidada: Natania Borges
Sonoplastia: Dani Lova
Operação de som: Lina das Santas
Luz: Rafael Casimiro
Operação de Luz: Fernanda Guedella
Figurino: Patricia Pina
Vivência em Dança: Tiago Reis
Fotografia: Thaina Robert e Gui Assano
Design Gráfico: @inspiracaoseis
Assessoria de Mídias: @dicacultural.plural