Esta apreciação sobre o livro “Coisa Feita – dois preto apaixonado na cama” é escrita por um homem negro – e isso é dito logo aqui no ínicio desse texto para que ele seja lido como uma espécie de extensão do que me parece uma das propostas da publicação: homens negros endereçando admiração para outros.
Iniciamos a leitura com uma espécie de aviso:
“Este livro vem prestar contas desta profunda unidade”
Esta frase localiza as poesias que vêm a seguir como uma proposta de justiçamento do erotismo de homens negros. Não à toa, o poeta nomeia o estilo de poesia HomoAfroErótica.
Com isso, digo que atrelar o erotismo a corpos de homens negros em um País como o nosso, sem que o olhar venha na chave da objetificação e/ou animalização, me parece um ponto de deslocamento para a criação da poesia de Jordan. O livro do autor de Camaçari (BA) que tem uma carreira pelos Slams de São Paulo tem ilustrações do artista Sete Genet-Piauhy e é vencedor do prêmio Caio Fernando Abreu de 2023.
A escritora negra norte-americana Audre Lorde vai chamar o erótico de uma espécie de “poder” profundo, intrinseco dentro de nós e que firma raízes profundas em nossos sentimentos reprimidos e desconsiderados. Uma imagem se criou desde que li esse trecho que está no texto Usos do erótico: O erótico como poder.
A palavra “raízes” me fez pensar no erotismo como uma espécie de árvore que podemos cultivar em nós, que exige rega, poda, que cresce em lugares inóspitos, que toma formas que escapam de nosso controle.
Digo isso pra dizer da grata surpresa que tive quando li o poema baobá, onde o desejo e admiração do amor entre homens é materializada na árvore africana a ser plantada pelos dois.
Inclusive, é interessante como o autor materializa os desejos neste livro, o quanto os homens negros vão ganhando contornos, camadas, cheiros, sabores, sons…
Muqueca, arroz com alecrim, lambada dos anos 90, mel, açafrão…
Um dos poderes do erótico é o da construção de imagens mentais – produção de imaginários. E talvez um dos desafios na contemporaneidade seja o de excitar a criação de imagens eróticas num sentido profundo.
Audre canta essa bola, dizendo que há um erotismo superficial que nos ronda, e enquanto as feminilidades são representadas como inferiores, as masculinidades precisam criar, para se reafirmar, uma imagem de poder.
você me ajuda a lavar meus dreads
enquanto
espalho shampoo matizador
no teu loiro pivete”
Nos diria Jordan em um trecho de seu poema Baobá. Essa e tantas outras composições poéticas no livro se opõe a essa construção masculina vigente, e enquandra os homens negros em uma chave necessária à dimensão humana, e essencial pro erotismo: a intimidade. As miudezas de viver uma vida, de viver um corpo, e de encontrar outros corpos, outras vidas.
Não sinto de forma alguma que o vetor para criar essas imagens que aumentam nosso repertório erótico de homens negros seja feita no campo de um moralismo estrito e rigoroso contra a ideia de erotismo negro que impera no imaginário comum.
Há uma oposição radical, pra mim, mais no campo da adição de diversas camadas, e que se coloca além do campo moral. “O Homem Negro” que desejamos, ou que somos, pode ser visto nas palavras. Penso ser esse um papel bonito atribuído à poesia enquanto gênero literário, a possibilidade de nos enxergarmos em camadas.
“Penso que o erótico é como esse núcleo dentro de mim. Quando liberado de sua vigorosa e restritiva cápsula, ele flui e colore a minha vida com uma energia que eleva, sensibiliza e fortalece todas as minhas experiências.” – Audre Lorde
Audre reconhece o erótico como um poder transformador na vidas das mulheres negras. Jordan estende o convite aos homens negros. Sua proposta é que nos inventemos, e nos aponta o erótico como um caminho possível, como um poder capaz de nos sensibilizar
Inventemo-nos!
Livro “Coisa Feita – dois preto apaixonado na cama”
Formato: 14×21 cm; 124 páginas
Ano de edição: 2024 – 1ª edição
Editora Reformatório
ONDE COMPRAR: Em diversas livrarias e lojas on-line