Fábrica de Bonecas: Filme vira clássico ao documentar vidas de pessoas trans na quebrada 

Fábrica de Bonecas: Filme vira clássico ao documentar vidas de pessoas trans na quebrada 

Na seção “De Lupa na Arte”, Rafael Cristiano resgata documentário lançado em 2015 no Cantinho do Céu. Quase 10 anos depois, obra do Coletivo Transação se mostra atual ao mostrar vivências de quem produz existências mesmo na falta

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O que caracteriza algo como um documento histórico? 

Quem está autorizada a registrar o passar do tempo na vida de uma sociedade? Para as integrantes do Coletivo Transação, seria uma boneca.

O ano era 2015 e era possível passar pela Associação de Moradorus do bairro do Cantinho do Céu, um dos mais afastados do Grajaú (Extremo Sul de São Paulo), e encontrar o Coletivo Transação ocupando uma das salas destinadas ao uso da comunidade. O coletivo era formado por jovens LGBTQIA+, em sua maioria pessoas trans.

“Fábrica de Bonecas” é um documentário feito “sem a preocupação de acertar”, como nos diz a descrição do vídeo que está disponível no Youtube. O título chama a atenção. “Boneca” é um adjetivo comum entre as travestis e mulheres trans.

Bastidores do documentário "Fábrica de Bonecas" (divulgação)

Luana Uchôa em bastidores do documentário “Fábrica de Bonecas” (divulgação)

O filme inicia com Luana Uchoa, integrante do coletivo, construindo uma boneca em tamanho real com material reciclável. Vemos o processo artesanal de criação de um corpo.

Na narração, a voz de Luana nos aponta qual seria a intenção por trás do título. “E se tivéssemos uma boneca que pudesse nos representar?”

É a boneca e sua capacidade de construção e criação e suas possibilidades de representar um ser humano ou a ideia de uma pessoa (como a Barbie representou por décadas uma ideia de feminilidade cis e branca, ou como as Bonecas Benguela do Grajaú e Parelheiros que representava meninas negras e indígenas.)

Agora, qual boneca anunciada pelo Transação estava sendo fabricada em 2015?

Logo após esse prólogo, o filme exibe uma sequência de registros, não só da ocupação das jovens na associação de moradorus como também nos espaços de convívio do bairro, nas ruas, nos risca-facas, na escola entre as crianças. Essas imagens são intercaladas com entrevistas que relatam a vivência de algumas delas.

Poderia me prestar aqui a uma espécie de resumo do que as meninas falam, mas acho que seria uma tentativa falha e fugiria ao que me parece ser um dos princípios do documentário: O tempo.

O que “Fábrica de Bonecas” parece fabricar é tempo, com sua quase ausência de cortes, sua dilatação temporal em cenas longas, não só para ouvir o que falam as meninas e mulheres, mas para vê-las falar por um espaço justo nos minutos, com suas pausas, trejeitos, suspiros…

Em uma espécie de autocrítica à cisgeneridade, penso que sabemos muito menos sobre o tempo, ao excluirmos pessoas trans do nosso convívio.

As entrevistadas me parecem saber usar isso a seu favor. Há desabafos, momentos de piada, de intimidade, filosofia… Ou seja, a elaboração da vida.

Logo, a ocupação na associação de moradorus do bairro me parece algo a ser registrado. Neste bairro, houve uma parcela de pessoas trans que ocuparam um espaço de representação coletiva, pensaram coletividade e comunidade, com todas as complexidades que envolvem espaços como esses, produziram vida.

Vida.

Vida.

Vida.

Vida.

..

.

Me parece que a “Fábrica de Bonecas” produziu uma porção de coisas. A vida é uma delas, mesmo quando há a ausência, a falta.

O documentário registrou um pedaço da vida de uma ausência futura, que com ares de melancolia bebia e ria em um risca-faca que havia na chamada rotatória do Jardim Eliana, um entrocamento de vias movimentado nessas margens da cidade.

Quem está autorizada a narrar a história?

História, essa, a oficial, a que se estuda e se ensina nas escolas?

Quem escreve os livros didáticos? Quem documenta o passar do tempo?

Quem figura nas páginas? Nas histórias? Quem fica com o passar dos anos?

Assisti esse documentário na estreia, em 2015, quase 10 anos atrás, e agora… Dessa vez, além de ser tomado por uma nostalgia, fiquei pensando que, com o passar dos anos, o próprio filme me pareceu a boneca fabricada, construída com matéria prima de vidas individuais, que vão se transformando em membros, tronco, cabeça.

E com o passar dos tempos…

Ainda…

Existe.

Assista o documentário abaixo:

 

Ficha técnica: Aloísio Silva Barreto, Anderson Gonçalves, Danielly Xivasquiy, Gabi Bolina, Carla Victoria, Luana Uchôa do Nascimento, Vinicius Linhares

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