“Das mãos que pariram, reciclam e transformam”. Esse é o título do livro ao mesmo tempo poético e pragmático, que indica uma fertilidade em colocar as coisas no mundo, ou as ressignificar. Fiquei imerso na imagem de um trabalho manual que planta, rega e colhe a vida e que fertiliza a terra.
De cara já traz uma imagem positiva pro trabalho das catadoras que integram com suas histórias esse livro-coletânea.
São 16 mulheres de diferentes cooperativas de reciclagem, grafando suas vidas no tempo, esse senhor que anda e faz com que nos esqueçamos de histórias comuns, de grandes revoluções íntimas, de pequenas autodeterminações que mudam o curso de uma coletividade inteira.
O livro inicia-se com 2 relatos curtos de mulheres que trazem na fala que são de gerações de catadoras, ou seja, entramos na obra com uma noção de que estamos falando de algo passado dentro de uma quase tradição familiar. Em seguida, um prefácio que contextualiza o cenário das cooperativas de reciclagem e da contribuição das mulheres negras para a construção desses espaços de trabalho horizontal, para chegarmos na apresentação escrita pelas organizadoras desta edição, que compartilham a ideia da criação do livro e como foi o contato com as mulheres que deram os relatos para compô-lo.
O livro foi narrado para ser escrito: antes de serem palavras impressas, foram palavras soltas no ar, em uma conversa. Esse fato é perceptível, lendo você se transporta para um espaço em que é possível estar de frente para essas mulheres e ouvi-las por minutos. Conforme vamos lendo, entendemos as diferenças nas cadências da fala de cada uma, traduzidas pelas pontuações, pelas escolhas de palavras, pelas imagens e metáforas que elas vão criando para narrar a si mesmas.
Não vou me ater a uma descrição de cada história, não acho que seria justo com o próprio livro. A impressão que tenho é que ele é criado para que o contemplemos como uma obra, que mesmo escrita por tantas mãos, diferentes palavras, diferentes vozes, é uma única obra, um retrato com muitas mulheres, uma pintura com muitas cenas.
Há uma palavra já gasta com a superficialidade contemporânea e que neste trabalho, ganha um contorno possível e direto. Escrevivência, o termo criado pela escritora Conceição Evaristo, e que em uma aproximação equivocada pode ser entendido apenas como uma escrita de si. Porém, a própria criadora do termo nos presenteia com a frase:
“A escrevivência não é a escrita de si, porque esta se esgota no próprio sujeito. Ela carrega a vivência da coletividade.”
Esse livro se aproxima desse conceito com muita assertividade. A fala de mulheres cooperativadas revelam a individualidade de cada uma, mas lendo as 16 histórias é perceptível o êxito em desenhar uma coletividade apagada pela sociedade e marginalizada. Uma coletividade composta de personagens de si mesmas, que se tornam por momentos, guardiãs de memórias menosprezadas, sacerdotisas de uma parte da história do país que começa a ser revelada conforme lemos. É possível acompanhar os avanços e retrocessos no trabalho de catadoras através desses relatos.
Muitas evocam a memória do trabalho antes das cooperativas, o trabalho de carroceiras nas ruas e o quanto estavam expostas a todo tipo de violência e preconceito. Elas dividem com a gente a insistência em um trabalho que é muito benéfico para um mundo que não pensa no que fazer com os resíduos que sobram de uma preocupação em produzir insistentemente.
É impossível não falarmos de Carolina Maria de Jesus, que escreveu seu livro “Quarto de Despejo” enquanto enfrentava a fome, o racismo e a misoginia que invisibiliza mulheres negras. Escreveu enquanto catava “lixo” para sobreviver, aqui também chamado de resíduo, que passaria depois por processos de reciclagem e se tornaria outras coisas. Carolina Maria de Jesus sempre teve o trabalho de ressignificar o que aparentemente não tem valor.
Nesse processo generoso, ela de alguma forma ressignifica milhares de pessoas por aí. Não à toa, sua memória aparece em diversas partes do livro. Ela é uma das grandes inspirações da vida de muitas mulheres catadoras que querem contar suas próprias histórias.
Sinto esse livro também como uma grande homenagem à memória de Carolina, um agradecimento. De alguma forma ela continua pegando com suas mãos os materiais das vidas de mulheres negras e dizendo que têm valor, que coisas que aparentemente não servem mais podem ser ressignificadas e transformadas em outras coisas e, principalmente, que a escrita é um espaço, um lugar. E esse lugar pode ser ocupado por mulheres racializadas. E graças a ela, hoje 16 mulheres catadoras negras e indígenas ocuparam, cataram palavras no terreno da vida, que vão se transformar dentro da gente.
Sinopse: “Das mãos que pariram, reciclam e transformam”, mulheres negras e indígenas escrevem suas escrevivências. Quando o coletivo “Carolinas e Firminas – cada dia nasce uma” faz a ponte literária para mostrar ao mundo as histórias de vida dessas mulheres, marcadas pelo sofrimento e alegria, mas que encontram forças, Axé, para si e para apoiar umas às outras, temos que celebrar. Trabalhadoras escritoras, que salvam o planeta, e é importante que elas reciclem suas vidas em textos-vivência. Aplausos para essas 15 mulheres negras e 1 indígena, da etnia Pankararu em contexto urbano que mora em Francisco Morato, município de São Paulo. Na soma, são 16 mulheres, que tiraram a máscara de ferro e jogaram a chave fora. Nem tentem calá-las, porque de mãos unidas podem plantar flores e te oferecer rosas ou cultivarem flores espinhosas. Vamos brindar e ler “Das mãos que pariram, reciclam e transformam”.
Informações
Organizadoras: Marli de Fátima Aguiar, Taynara Carvalho,Thuane Marques
Apoio Coletivo “Carolinas e Firminas – Cada dia nasce uma” e “Casa Sueli Carneiro” – 2022
Selo dandaras
Gênero Crônica
Ano 2023
ISBN 978-85-54867-19-5
Formato: 14 x 21 cm
252 páginas
Preço R$ 45. Clique aqui para comprar
Rafael Cristiano