Em primeiro espetáculo, coletivo MemOrí dança para criar rastros de existência

Em primeiro espetáculo, coletivo MemOrí dança para criar rastros de existência

Uma linha de terra no chão abre espaço em que corpos negros contornam a raça com tons poéticos. Confira a crítica de Rafael Cristiano sobre “Migalho”

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Tempo de leitura: 6 minutos

O que vão nos narrar esses corpos encurvados andando sem rumo definido por esse espaço de luz âmbar? Sobre as diversas tonalidades de marrom que revestem os descendentes de pessoas africanas por aqui, a luz âmbar sempre me parece um contraste interessante.

Migalho é o primeiro espetáculo de dança criado pelo coletivo MemOrí, que inaugura uma materialidade fruto de uma aparente pesquisa sobre deslocamentos possíveis daquilo que institucionalizamos como dança.

Quais imagens são criadas a partir de estímulos que a raça, enquanto lugar social e cultural, nos dá ao atravessar nossos corpos?

Foi o que comecei a pensar assim que inicia-se o espetáculo:havia algo de rito no ar quando uma delas delimita um espaço com terra, entre o público e os corpos que vão dançar, uma risca feita de terra escura. Entre nós, um pacto silencioso, me senti testemunha de uma coletividade negra e jovem em puro movimento.

Achei caminhos interessantes de expressão de lugares raciais em nossa sociedade. Dois corpos femininos são os primeiros a se destacar, duas mulheres e a vivência de uma dor solidária e espelhada foram leituras que decifrei daqueles corpos com tecidos em tons terrosos.

Um grito palpável que sai de uma garganta e encontra outra, como um feitiço que se desenha no ar, mas é mais palpável do que minhas palavras. Há a presença pronunciada de uma musicista e cantora a todo momento, em um canto do palco, visível por uma luz apenas para ela, para ser vista ao conduzir ou contradizer o que diziam os corpos.

Em seguida, salto para a imagem em que três homens giram em torno de suas distâncias, em um início em que eles tentam se tocar e não conseguem. O  toque é permitido apenas pelo viés da violência ou do tesão, que são coreografados com ares de tensão. Essas qualidades aqui se fundem, parecem uma face de uma mesma moeda, o ódio e o desejo.

“Como produzir imagens em que corpos masculinos negros existam pra além?”

Me parece que foi uma tentativa de escavação nessa pesquisa do MemOrí. Ressalto o quão é interessante pensar que essa cena é ritmada por uma garrafa de bebida, o que me levou a pensar no álcool como um grande motivador do toque entre os homens, sejam os carinhos destinados a um amigo, os desejos com tons de segredo e as brigas de bar… “Tudo uma desculpa pra se tocar”, confesso que pensei sentado testemunhando por trás da linha.

Fui conduzido por momentos alegres em que a atmosfera muda completamente. Vi entre os movimentos de corpos em festa, as reuniões familiares, as celebrações da vida em meio ao estalar de leques que ficaram tão conhecidos no último carnaval, e que agora embala uma espécie de baile onde a alegria parece um espírito que vai tomando os corpos. Pensei de alguma forma no conceito de Asè pra nós de candomblé… Uma energia boa e que circula.

Até parece uma preparação para as imagens de morte e daqueles que atravessam a linha. O Opanijé, o toque de Omolu, começa a ressoar quando se anuncia esse orixá. Podemos ter o prenúncio da passagem de uma doença ou da chegada da cura, um dos corpos desfaz um pedaço da divisão de terra e passa, vem se desencantar aqui do nosso lado, cospe o cristianismo compulsório entalado na garganta. De alguma forma aquilo não parecia caber dentro do espaço que elas e eles imaginaram.

Esse é o momento que mais beira uma concretude, o que há do outro lado de uma linha de encanto âmbar. Confesso que me interesso mais pelo o que vislumbram esses corpos que agora se abaixam e ⁠comem a terra, brincadeira de infância em que imaginávamos bolinhos na terra vermelha.

Num primeiro momento achei que se tratava do tal do migalho, evocado pelo título, algo pouco, escassez, aquilo que resta… Mas fui transformando o meu olhar para a ideia de um contato íntimo com a natureza ou a transformação de nós em um porvir, afinal acabamos de nos encantar pelo Obaluaê (literalmente O rei da Terra, título conferido a Omolu.)

Ou ainda ressignificando o título, migalho como ⁠os rastros que se deixa na floresta, para se encontrar e não ser achado, ou seja, a importância dos pequenos achados em uma pesquisa bonita, como primeira de um grupo de dança.

Do mistério da luz âmbar sobre os tons terrosos, me peguei pensando como grafamos o modo como se moviam os ancestrais?

Asé e vida longa ao MemOrí.

Anotaí! Tem apresentação de Migalho nesta sexta e sábado (dias 7 e 8 de junho), às 19h, no Teatro de Contêiner – R. dos Gusmões, 43 – Santa Ifigênia – centro de São Paulo

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