Poeta do Grajaú passeia entre palavras que convocam presença e garantem boa companhia

Poeta do Grajaú passeia entre palavras que convocam presença e garantem boa companhia

“De onde me vim nunca me fui”, da poeta e professora Michele Santos, tem prefácio de Maria Vilani, outra referência no bairro. Confira na crítica de Rafael Cristiano, a primeira de 2024 da seção De Lupa na Arte, neste Dia Mundial do Livro

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Fotos: Carolyne Leone, Alessa Melo, Lea Gomes

“Então como não pensar das cicatrizes

um arquétipo agudo da beleza?”

O que compõe a poesia? As palavras deslocadas dessa forma, a fim de formar rimas, linhas, estrofes, ligações, silêncios, identificações, repulsa… Enfim, a poesia. O que podem as palavras deslocadas assim?

Saí da leitura de “De onde me vim nunca me fui”, recente livro de poesias da escritora Michele Santos tomado por essa questão. A autora nos conduz com delicadeza e um domínio certeiro da linguagem por caminhos que a revela e que aos poucos vai nos revelando também.

Os temas se dividem em espécies de blocos/capítulos que contornam a experiência de uma poeta e professora de escola pública moradora do Grajaú, periferia do Extremo Sul da cabulosa SP-City.

No primeiro, Michele compartilha sua experiência de mulher e seu olhar para as mulheridades. “… Porque uma mulher antes de tudo são suas carnes / Há muitas metáforas entre o mundo e os açougues,” nos diz a autora, que articula memórias, desejos de revoltas e desafios sociais de sobreviver à estrutura patriarcal em “Balé de fogo e rodas cirandas”, título que abraça todos os poemas desse primeiro bloco.

Aliás, todos os capítulos são iniciados com excertos de alguma poesia que os compõem, e essa escolha faz a gente entrar em cada divisão com uma imagem certeira de onde Michele quer nos conduzir – como em “Lamber os postes do bairro com teu nome” que nos localiza nos poemas enamorados, na paixão por outra pessoa, nos rastros que alguém deixa ao nos adentrar.

“Meu amor tem mais ruído / que o silêncio de uma solidão no polo ártico” 

Confesso que depois de ler o livro em duas viagens na Linha Esmeralda, precisei ler os poemas desse bloco em voz alta na sala de casa. É uma pista deixada para pergunta do início. Talvez algo que as palavras possam mobilizar seja a beleza, que nas poesias de Michele pode também ser traduzida por encanto à vida.

Isso acontece, mesmo quando há um capítulo que versa sobre o “peso da existência”, atributo certeiro apontado no prefácio da também escritora e poeta grajauense, Maria Vilani.

Quando as poesias mobilizam questões sociais importantes, ou questões das melancolias e tristezas que nos atravessam, Michele nos encanta com a leveza de uma “borboleta de aço pousada no peito”.

Há muitos vazios e silêncios entre essas páginas e não me parece que a ideia da autora seja preenchê-los, ou dar rápidas resoluções às questões que carregamos por anos, ou o que está em nossa família e é preservada geração a geração chegando até nós. Por sinal, a poeta fala sobre as relações geracionais de um jeito que sublinha as complexidades e não as apaga. Sinto que em alguns momentos fui convidado a observar os ocos da existência e não tentar preenchê-los, apenas observar…

Penso que escrevi muito mais embalada pela emoção do que dotada dos conhecimentos teóricos necessários para apresentá-la”, nos alerta Maria Vilani no texto que abre “De onde me vim nunca me fui”, e eu faço uso da declaração dela, e peço licença para tomá-las também como minhas.

Atribuo isso à capacidade da poesia de Michele Santos de nos convocar presentes no tempo do afeto, na possibilidade de pegar emprestadas as palavras lapidadas da artista e contemplar algumas urgências e vazios.

Uma vez presente, aproveito esse espaço para trocar uma mensagem com a autora: Me parece, Michele, que há ao menos duas funções na palavra deslocada assim – uma invocativa e uma outra que serve como boa companhia. Obrigado por nos lembrar.


SAIBA MAIS

formato: 14×19,5 cm; 84 páginas

ano de edição: 2023 – 1ª edição

Editora Urutau

ONDE COMPRAR: Pelo site da editora (clique aqui) Ou com a escritora-ela-mesma, que ainda faz o tal do corre independente, por mensagem direta no instagram (clique aqui)

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