Grajaú, Extremo Sul de São Paulo. Meio milhão de habitantes à margem: da cidade, da represa Billings, da garantia de direitos. Quantas histórias de luta e resistência habitam esse chão? Que histórias são essas? Quem ousa contá-las?
“Somos esses seres marginais, catadores da rua, ouvintes e fazedores de história”, diz Tatiana Monte, diretora que compete uma perspectiva feminista a “Grajaú conta Dandaras, Grajaú conta Zumbis”, espetáculo da Cia Humbalada de Teatro que fica em cartaz até dezembro e que trata de questões raça, classe e gênero. “As periferias e as minorias sempre foram cerceadas de escrever essa história. Sempre fomos meros coadjuvantes”.
O vídeo produzido pelo Periferia em Movimento é só um pequeno recorte dessa peça de 2h30 de duração. Buscamos não dar spoiler. Pra saber do todo, tem que assistir presencialmente.
Afinal, o espetáculo reúne artistas nascidos, criados, atuantes no território para mostrar as histórias que acontecem nessa periferia – distrito mais populoso de São Paulo -, mas que não são casos exclusivos daqui e nem de agora.
Além da Cia Humbalada, saíram às ruas para catar essas histórias outros grupos da região: As Furiosas, Enchendo Laje & Soltando Pipa, Grupo 011, Identidade Oculta, Banda Razallfaya, além das atrizes Carmem Soares, Cristiane Rosa e Fabiana Pimenta e do ator Lucas Bernardo.
E pela rua voltam com a bagagem cheia: falam da chegada dos trabalhadores que migraram de outro estado, do lote de terra e da laje batida no domingo chuvoso; das roupas penduradas em varais de casinhas de tijolos vermelhos e do cheiro do almoço que pula os muros; do futebol de domingo seguido do samba com cerveja na porta do bar; da represa de horizonte infinito; da vontade de ficar aqui para sempre, ao menos que seja pra voltar pra terra natal.
Falam também da caótica Belmira Marin, avenida que a une a todos nos congestionamentos intermináveis saindo ou voltando pra casa, no horário de pico ou meio da tarde, dia útil ou fim de semana; do amontoado no transporte coletivo, das opressões cotidianas que passam quase despercebidas e até do passageiro que entra no busão com a caixa de esfihas do Habibs na mão, atiçando a fome dos demais.
Nem tudo é samba ou pancadão. É pancada. Ferida aberta, sem intenção de cicratizar.
A transexual não consegue seguir e expõe o alto índice de suicídios entre essa população. O menino gay, que sempre quis brincar de boneca quando criança, manda um recado para os vizinhos fundamentalistas de uma igreja recém-aberta ao lado do espaço onde a peça acontece: “Pro armário eu não volto mais”.
O trabalho? É uma droga. E enquanto os homens se digladiam em busca de poder, as mulheres lutam contra as diversas violências e todas as tentativas de controle de si: nos xingamentos e estereótipos, no parto, nos relacionamentos amorosos, na solidão, na morte dos filhos que são tirados delas pelo próprio Estado.
Os corpos ainda são tombados. O genocídio tá escancarado, permeia as cenas, denuncia a naturalização da negação à própria existência. Como em Dandara e Zumbi dos Palmares, líderes do mais conhecido período de resistência ao cativeiro do povo negro no Brasil, esse remonte de histórias indica que por aqui a luta segue. Tem que seguir, pois desistir nunca foi posto como opção.
“Nós não temos mágoa, nós temos memória. A gente não sabe no que tudo isso vai dar, mas temos uma certeza: o Grajaú segue sangrando e não dá mais para ficar assim”, conclui Tatiana.
Thiago Borges
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