‘Dança dentro’: espetáculo convida infâncias periféricas a brincarem em cena

‘Dança dentro’: espetáculo convida infâncias periféricas a brincarem em cena

Compartilhe!

Tempo de leitura: 7 minutos

Ao chegar ao teatro Flávio Império, localizado próximo à estação de trem Engenheiro Goulart, na Zona Leste de São Paulo, um convite pareceu inusitado: “Venham, subam e se sentem no palco.”

A convocação destinava-se às crianças de um CCA (Centro de Crianças e Adolescentes) da região, que estavam ali para assistir a um espetáculo de dança para as infâncias.

Crianças se envolvem com os elementos da peça./Crédito: Leonardo Souzza


Se para os pequenos soou estranho, para os adultos que as acompanhavam pareceu ainda mais incomum. Demorou um tanto para entendermos que o convite não era para sentarmos nas cadeiras do teatro, onde nos distanciaríamos das artistas, mas para borrar os limites entre quem faz arte e quem a contempla.

Dança Dentro é o primeiro espetáculo do coletivo Menina Fulô, que nasceu na Zona Leste e já fez diversas apresentações na cidade e também fora dela. A peça inicia a trilogia das águas, obra voltada para as infâncias. 

As crianças dentro do espetáculo

Uma vez que nos posicionamos ao redor do espaço cênico, onde um tapete de crochê vermelho com fios bordados cobria o chão, as atuantes começam a se mover e, ao fundo, duas musicistas tocam e cantam durante toda a experiência.

Crianças ouvem pela primeira vez o barulho de uma concha./Crédito: Leonardo Souzza

Aos poucos, vemos a primeira imagem se formar: uma mulher segura uma imensa concha sobre a barriga e entendemos que ela representa uma pessoa em gestação.

As conchas vão sendo conduzidas pelas atuantes até os ouvidos das crianças, e logo elas sacam que não estão ali para assistirem passivamente. O encanto de ouvir o barulho do mar as convocam para um estado de presença – algumas comentavam durante a apresentação que era a primeira vez que ouviam uma concha.

Essa atmosfera de suspensão que a imagem inicial cria, conduzida pela musicalidade, se transforma gradativamente. As atrizes compartilham o texto dramatúrgico, anunciando que o primeiro contato que temos com as águas é dentro do útero: lugar em que o ser em formação começa a se mover e, portanto, a dançar. Logo, a primeira dança é dentro.

A peça é formada por jogos em que os objetos cênicos têm uma importância fundamental, são brinquedos que ajudam a narrar a história e convidam as crianças a protagonizarem a apresentação. As atrizes acabam se tornando espécies de guardiãs e condutoras para que os pequenos experimentem, brinquem e dancem o espetáculo, que só se completa na interação.

Tudo é um convite para remeter à fase em que fomos gestados: desde o tecido que é lançado para cima, onde é possível dançar embaixo e que lembra uma fina membrana; a corda que as crianças pulam e depois andam em trajeto, lembrando o fio que nos alimenta e nos liga a quem nos gera; os círculos unidos que formam uma bola vazada, em que as crianças brincam e dançam dentro.  

A peça é formada por jogos em que os objetos cênicos têm uma importância fundamental./Crédito: Leonardo Souzza

Os textos são curtos e muito poéticos, uma dramaturgia que acontece quase por aforismos e que contorna assertivamente o que vemos e experienciamos. A música parece seguir a mesma toada e transmite a narrativa. Um destaque aqui para as duas cantoras e instrumentistas, que orquestram, com uma beleza encantadora, instrumentos em sua maioria feitos de água.

Um dos acertos da obra é que em nenhum momento a ideia de pessoa que gesta se encerra apenas em mulheres cisgênero. Ao focar a narrativa na pequena pessoa sendo gerada, a experiência de corpos dissidentes de gênero, como pessoas trans-masculinas e não-bináries, também pode ser considerada.

A peça aconteceu dentro da terceira edição do Festival No caminho do Brincar, promovido pelo próprio coletivo. Enquanto assistia às crianças brincarem, se divertirem, dançarem e completarem uma obra artística, fiquei refletindo sobre o lugar que as artes para as infâncias têm em nossas coletividades, sobretudo dentro de periferias. 

Como um reflexo da sociedade em que crianças, principalmente periféricas, têm pouco ou nenhum lugar na construção de nossas comunidades, as materialidades artísticas que têm como finalidade o contato com os pequenos é também escassa nas bordas das cidades. E, quando existem, exigem um esforço dobrado para se manterem. 

Fazer arte para as infâncias nas periferias se torna então um importante ato de resistência por si só.

Cantoras e instrumentistas orquestram instrumentos em sua maioria feitos de água./Crédito: Leonardo Souzza

É necessário sempre encantar as infâncias, criar espaços saudáveis e lúdicos para a brincadeira, borrar os limites e entendimentos sobre a arte, essa que nos parece ainda tão elitista. E seguir dançando, como dançamos dentro.

Das belezas que rompem os chãos das quebradas por aí…


FICHA TÉCNICA

Direção: Veronica Avellar

Dramaturgia: André Do Amaral

Intérpretes criadoras:

Danielle Rocha 

Bianca Mesquita

Veronica Avellar 

Patrícia Bruschini

Músicos e cantoras em cena:

Leonardo Rocha 

Ritamaria

Amabile Inaê

Alessandra Maria

Trilhas percussivas: Leonardo Rocha

Autoria das canções: André do Amaral

Arranjos musicais: Ritamaria

Figurinos: Paolo Suhadolnik

Cenário: Carol Stoppa

Produção geral: Veronica Avellar e Danielle Rocha

APOIE!
Ir para o conteúdo