Por Laís Diogo e Thiago Borges. Foto: Espetáculo “Pancadão” / Núcleo Pele
O mundo decretou pandemia de coronavírus e Suzi Soares viveu uma sequência de sentimentos: incredulidade, susto e pânico. Você se reconhece nisso? “Era difícil acreditar que aquilo que vimos acontecer na China, um país tão distante da gente, pudesse realmente acontecer aqui também”, conta ela, que é articuladora do Sarau do Binho.
A iniciativa acontece há 16 anos na região do Campo Limpo (Zona Sul de São Paulo) e é um dos símbolos da cultura que brota das periferias de São Paulo. Mas os encontros entre poetas, músicos e outros artistas de diversas linguagens foram interrompidos. Em toda a cidade, atividades culturais presenciais foram suspensas.
Os trabalhos do Sarau do Binho, remunerados ou não, também foram suspensos. Pelo whatsapp, bombavam as mensagens em um grupo com 25 das pessoas mais ativas e presentes no sarau. Na tela, relatos de angústias, medos, incertezas, dificuldades financeiras e emocionais. Mas também tinha espaço para vídeos com músicas e poesias.
“Daí, surgiu a ideia de publicarmos esses vídeos no facebook e instagram usando a #sarauemtemposdecorona”, conta Suzi. Mais pessoas, inclusive de outros países, se juntaram à hashtag que já soma mais de 180 publicações. “Essa troca vem nos ajudando a superar um pouco todas as dificuldades deste momento, porque a poesia, a música, também são formas de cura”.
Confira abaixo:
Ver essa foto no Instagram#sarauemtemposdecorona #saraudobinho
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Os artistas Gelson Salvador e Bruno Pastore, do graffiti e da literatura, também apostam nas redes sociais pra continuarem se expressando. Eles resgataram o projeto @Des_dobro, com publicações pelo instagram e no whatsapp. “Fazer poesia e desenhar nos dá prazer, e prazer comunicado é arte”, dizem os dois. “Tentamos fazer algo que seja compartilhado em correntes digitais como um vírus do bem em resposta aos sentimentos ruins que estão sendo disseminados por aí e só geram medo e paranoia”.
Para o músico, capoeirista e professor Alan Zas, a quarentena permitiu um tempo para estar consigo mesmo, cuidar do que tava encostado, rever arquivos, lembrar de pessoas, organizar projetos. “No meu caso, que moro sozinho num espaço que sempre tinha gente, é lidar com a sensação de vazio”, diz ele, que é integrante e mora no Cazuá, um espaço cultural autônomo localizado no Jardim Eliana (Extremo Sul de São Paulo) que sedia atividades artísticas diversas.
Alan estuda, cria e tem gravado músicas que publica nas redes sociais. Veja abaixo:
Ver essa foto no InstagramCanção autoral, de 2013, arranjada e gravada durante esses dias de quarentena!!
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Com apresentações canceladas, os integrantes do Núcleo Pele, um grupo teatral sediado no Grajaú (também no Extremo Sul), se reúnem em videochamadas para ensaios, reflexões e outras práticas para manter acesa a chama da arte. Nesses encontros virtuais, o grupo desenvolveu “5 Amostras de Um Fim”, experimento que mostra um futuro não tão distante em que pessoas do Grajaú são convidadas a serem cobaias num experimento de quarentena total em câmaras subterrâneas.
Apesar disso, a limitação do acesso à internet e a profusão de lives e vídeos rolando diminuem a possibilidade de chegar no público que realmente gostariam de atingir. “Tela é plana e teatro tem profundidade”, lamenta Deni. “Nosso fazer teatral é vivido no lugar e no momento”.
Efeitos objetivos e subjetivos
Na incerteza de continuidade do projeto, o Coletive Transferência interrompeu os trabalhos para ficar em casa e atrasou a entrega de 02 documentários e a realização de um festival que aconteceriam em abril. “Sabemos o quanto este momento está sendo difícil para o trabalho independente, ainda mais para pessoas trans, e decidimos entrar em quarentena por nossas vidas e das pessoas que nós convivemos”, diz Maya Guedes, integrante do grupo, que é formado por pessoas trans e trans não-bináries e tem um projeto contemplado pelo Programa VAI da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. As inscrições do edital 2020 foram prorrogadas até 30 de abril.
No Sarau do Binho, 90% dos artistas não têm renda fixa. Alguns tentam obter o auxílio emergencial do governo, enquanto muitos já estão devendo o aluguel e outras despesas.
Por isso, recentemente, o Sarau do Binho lançou uma campanha de financiamento coletivo na plataforma Benfeitoria com o objetivo de pagar um valor simbólico de R$ 200 por mês para os artistas do grupo publicarem um vídeo-poesia por mês nas redes sociais com a #sarauemtemposdecorona. Suzi também participa com outros grupos de uma campanha para arrecadar fundos para profissionais autônomos que, até o momento, já ajudou mais de 1.000 famílias.
Enquanto isso, a Prefeitura de São Paulo anunciou o retorno de oficinas das Casas de Cultura à distância e lançou um chamamento para receber propostas de atividades culturais também à distância. Já o Governo do Estado lançou a plataforma #CulturaEmCasa, com conteúdos em vídeo, além de uma linha de crédito para o setor criativo. “Meu medo é que acabe contemplando aos que menos precisam, como sempre”, indica Suzi.
A crise vai além do bolso. Ela impacta as mentes e os corações.
Há aqueles que conseguem criar em cima da situação atual, enquanto outros artistas travam. “Pra algumas pessoas do nosso grupo, percebe-se nitidamente o quanto este aprisionamento dentro da própria casa, sem poder ir pra rua, encontrar pessoas, abraçar pessoas, andar, tomar sol, lhes faz mal. A longo prazo não consigo imaginar como vão ficar”, conta Suzi.
Ver essa foto no Instagram@des_dobro nossa guerrilha de #quarentena
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Gelson Salvador e Bruno Pastore, do projeto @des_dobro, temem a “domesticação” que pode nos levar a uma cultura estritamente digitalizada e virtual, que evita revoltas contra o poder vigente. “A cultura é a responsável por criação de sentidos, costumes, comportamentos e ações. Os impactos subjetivos podem ser negativos se nos acostumarmos com isso sem estranhamentos, sem ao menos nos questionarmos”, apontam.
Para Alan, ao mesmo tempo que a tecnologia facilita o contato, também pode ser armadilha para insuflar egos em busca de visualizações. “Um dos grandes riscos da quarentena é exatamente a radicalização dessas carências, que já se apresentavam como parte dos sintomas das depressões sociais dos últimos tempos”.
Um antídoto? “A pena da quarentena pode ser revista, se levarmos essa reflexão em consideração, e aproveitarmos pra tomar nossas vidas em nossas mãos”, conclui Alan.
Esse conteúdo faz parte da #SalveCriadores, uma iniciativa que a partir do apoio a coletivos e criadores de conteúdo das periferias de São Paulo vai trazer reflexões e dados sobre a crise da COVID-19 e seus reflexos nas populações negras e periféricas. O projeto, desenvolvido pela Purpose, busca reforçar o importante trabalho que vem sendo feito por criadores de conteúdo e trazer pontos de vista e perspectivas que ainda não foram levantados. Os coletivos que fazem parte dessa iniciativa são o Alma Preta, o Nós, Mulheres da Periferia, a Periferia em Movimento e a Rádio Cantareira. Os conteúdos serão publicados nos canais de cada coletivo e divulgados nas redes sociais do Cidade dos Sonhos.
Redação PEM