A legislação brasileira diz que apenas maiores de 16 anos podem trabalhar – e não é permitido o trampo após as 22h nem atividades insalubres ou perigosas. A partir dos 14 anos de idade, adolescentes podem ingressar em empresas como aprendizes.
Porém, na realidade, estima-se que 1,6 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos trabalhavam em 2023, segundo dados do IBGE.
O número já foi muito maior e levou a motins, como o registrado em 1922 em uma antiga fábrica das Indústrias Matarazzo na avenida Celso Garcia, zona Leste de São Paulo. Cansados de serem esfolados por 9 ou 10 horas por dia, meninos se rebelaram e apedrejaram o dirigente da unidade, que perdeu uma perna.
O caso é narrado no segundo de quatro episódios do podcast Cria Histórias, produzido pela Cria Coragem, iniciativa do Instituto Çarê que constrói novas narrativas sobre as infâncias, com foco na prevenção e erradicação ativa da violência sexual contra crianças e adolescentes.
Esta edição aborda a exploração de corpos infantis e adolescentes para a geração de lucro. Ouça abaixo e confira todos os episódios e materiais de apoio aqui.
[link do episódio]
“O industrial Matarazzo chegou a comprar máquinas pequenas adequadas ao tamanho das crianças para aumentar a produtividade do trabalho na fábrica Maria Ângela” – Margarete Rago, historiadora e professora da do departamento de história da Unicamp.
A pesquisadora diz que, no início da industrialização, só mulheres e crianças trabalhavam nas fábricas, que produziam itens como velas, fósforos e tecidos. Apenas nos anos 1930, com a produção pesada de veículos e outros materiais, é que os homens ingressaram na indústria.
Foram as crianças que, no início do século 20, paralisaram as fábricas em movimentos grevistas que resultaram em regras trabalhistas e turnos de até 8 horas de trabalho por dia.
“De repente tem uma mobilização infantil, das crianças fazerem greve, boicotarem ou abandonarem o trabalho?”, destaca a professora, que ressalta que o direito à infância ou adolescência nem era reconhecido.
Somente em 1990, com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), quem tinha menos de 18 anos passou a ser reconhecido como sujeito de direitos em desenvolvimento.
Antes disso, nos anos 1980, o multiartista Mário Deganelli conseguiu um emprego com carteira assinada aos 12 anos, em uma fábrica de bonecos.
Diante de uma medida da empresa para descontar os minutos diários em que a equipe parava para tomar café, aos 13 anos Mário fez um abaixo-assinado e se tornou representante da “peãozada” junto ao sindicato.
“Imagina um menino de 13 anos de idade… eu lembro que eu tremia assim, ficava naquela reunião um monte de cara com cara de mal”, recorda Mário, que enfim ganhou a causa.
Uma herança colonial
Margarete nota que, nas comunidades rurais e tradicionais, a criança participa do mundo adulto. A separação acontece a partir da urbanização, da industrialização e avanço do capitalismo, em que a segregação espacial é determinante onde cada pessoa deve estar.
A lógica parte da realidade das fábricas, que eram ocupadas sobretudo por pessoas brancas imigrantes ou descendentes de quem veio da Europa naquela virada do século. Pessoas indígenas e negras estavam fora – portanto, na informalidade.
“A carteira de trabalho é um documento de polícia. Ela surge como um documento de controle. A polícia mesmo dizia: ‘RG é documento de vagabundo, quero ver se tem carteira de trabalho para saber se você tá sobre o controle’” – Casé Angatu.
Indígena de Olivença (BA), Casé é professor universitário, escritor e historiador. Ele lembra que o espaço público foi destinado às pessoas rejeitadas ou que rejeitaram o espaço privado. É o caso de meninos engraxates, que brincavam enquanto trabalhavam – uma ideia de liberdade.
Crianças negras e indígenas, que no período colonial foram sequestradas, abusadas e até gestaram, continuaram submetidas à exploração e com menos possibilidades de desenvolvimento.
A entrada precoce no mercado de trabalho também se reflete na autoestima, na chance de se reconhecer como indivíduo e na imposição de “ser útil” – algo que atinge a todo mundo e que é ensinado.
Quando falamos das jornadas de 6 dias de trabalho para 1 de descanso (6×1), falamos dessa herança que atravessa os séculos e penaliza pessoas adultas que vêm de um processo de exploração.
O projeto de emenda constitucional da deputada Erika Hilton, que aguarda tramitação no Congresso Federal, busca limitar a jornada a 4 dias de trabalho para 3 de descanso.
“A história do Brasil é também a história dos corpos infantis violados desde o período colonial, do Império e da República e que ainda continua sendo (…) E ao mesmo tempo é a história da resistência de corpos infantis que mantém-se ainda vivos, né?”, completa Casé.
Arte de capa: Rafael Cristiano