Volta às aulas em SP: Comunidade escolar critica uso de aplicativos e militarização na educação estadual

Volta às aulas em SP: Comunidade escolar critica uso de aplicativos e militarização na educação estadual

Pasta encabeçada por secretário Renato Feder promove transformações que indicam tentativa de controle ideológico e comportamental em escolas paulistas

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Por André Santos. Edição: Thiago Borges. Arte: Rafael Cristiano

“Eu prefiro mil vezes copiar um texto a fazer um exercício na plataforma, que dificultou muito o ensino. Antes eu usava mais meu caderno que meu celular, e hoje em dia eu uso mais meu celular que meu caderno na sala de aula”.

A Giovana, de 15 anos, é aluna do primeiro ano do Ensino Médio e moradora do Jardim Lucélia (zona Sul de São Paulo). E no relato acima, ela retrata a realidade que acomete grande parte das escolas estaduais de São Paulo, que retomaram as aulas do segundo semestre nesta segunda-feira (29/8).

O governador Tarcísio de Freitas (à esq.) e o secretário Renato Feder

O governador Tarcísio de Freitas (à esq.) e o secretário Renato Feder

Sob a gestão do secretário Renato Feder, que faz parte do governo comandado pelo bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos), a área tem passado por mudanças significativas na metodologia de ensino e influenciado diretamente o ambiente escolar e o processo de aprendizagem de estudantes paulistas.

A novidade mais recente é a promessa de militarizar escolas, com a presença de policiais nas unidades. Mas um processo menos ruidoso é a adoção de plataformas digitais na sala de aula.

Liga ou desliga?

A introdução da tecnologia no ambiente acadêmico teve início em meio à pandemia, em 2021, quando as aulas aconteciam em formato híbrido ou à distância devido às restrições sanitárias impostas da época. No entanto, passado o período conturbado, as ferramentas virtuais permaneceram e o uso de aplicativos passou a ser cada vez mais recorrente dentro das salas de aula.

Para o estudante Luiz Guilherme, 17, também morador do Jardim Lucélia, a implementação das plataformas é negativa, mesmo que elas promovam a integração de diferentes tecnologias e flexibilidade no aprendizado.

Na visão do jovem, a digitalização do ensino trouxe alguns desafios a mais para estudantes, especialmente para quem não tem acesso adequado à internet ou dispositivos eletrônicos.

“As plataformas pouco funcionam e o uso excessivo delas tende a ser desgastante e desmotivador, especialmente para aqueles que não têm um ambiente de estudo adequado em casa, como eu. Na minha opinião, é mais negativo que positivo”, diz Luiz.

A mudança de metodologia foi gradativa e não houve consulta prévia a docentes nem estudantes da rede estadual. Hoje, professoras e professores relatam dificuldades em se adaptar às novas tecnologias, além de reclamarem que o conteúdo pré-estabelecido cerceia a liberdade e afeta negativamente a qualidade de ensino.

“O novo governo implementou um processo avassalador de plataformas digitais. É normal para um secretário que é dono de empresa de produtos de informática (Renato Feder é acionista e ex-CEO da Multilaser, marca de eletrônicos). Parece que todo o conhecimento está ali nas plataformas, que nada que fizemos até hoje é conhecimento e aprendizado”, comenta o professor da rede estadual Severino Honorato, 54 anos, morador do Campo Limpo, na zona Sul de São Paulo.

Luiz Felipe, estudante

Luiz Felipe, estudante

O método de digitalização do ensino não é uma novidade no Brasil. O mesmo Renato Feder liderou o processo de plataformização no Paraná, onde também exerceu a função de Secretário da Educação entre 2019 e 2022, durante o primeiro mandato do governador Ratinho Júnior (PSD).

No sul do País, a comunidade escolar rejeitou as mudanças e denunciou que o governo paranaense adquiriu diversos aplicativos para, além de padronizar o currículo, vigiar o trabalho docente e impedir métodos de educação libertadora, em cenário bastante similar ao que está em curso em São Paulo.

No ano passado, Feder considerou desistir de utilizar livros didáticos, alegando que profissionais deveriam utilizar apenas slides nas aulas, mas posteriormente recuou da decisão e afirmou arrepender-se ao se dar conta que a medida “não era inteligente”.

“Telas de aula”

De acordo com o professor da rede estadual Jefferson Santana, 35 anos, morador do Parque Novo Santo Amaro, na zona Sul de São Paulo, o uso exacerbado de aplicativos e plataformas de aprendizagem prejudica profundamente a relação entre educador e estudante.

Jefferson afirma que quem está na sala de aula tem sido muito mais “replicador de plataformas” que verdadeiramente “professor” pelo fato de não serem mais responsáveis por selecionar o conteúdo a ser lecionado.

“Isso é antipedagógico e desumaniza e muito a formação dos jovens, reduzindo a diversidade de suas interações e possibilidades de aprendizado. Acredito que todas essas mudanças afetam não somente o ensino-aprendizagem, mas também as próprias questões psicológicas, ainda mais agravadas a partir da pandemia”, pontua.

Tela de abertura de aplicativo do governo estadual

Tela de abertura de aplicativo do governo estadual

O discurso é endossado por Giovana:

“Tem alunos que realmente gostam (das plataformas), mas boa parte não gosta. Para nós é algo negativo demais, porque tira toda a autonomia do professor. Se você tem um professor que gosta de aprender por conta dele, por mais que odeie a matéria, e esse professor te dá o conteúdo através de uma plataforma isso vai ser algo negativo ao ponto de tirar sua vontade de aprender aquela matéria”, diz a jovem.

A Suécia, que desde a década de 1990 opta pela educação 100% digital nas escolas, recuou em sua política e investiu 45 milhões de euros na distribuição de livros didáticos impressos. A medida foi considerada necessária após o governo do país avaliar que estudantes passaram a ler menos e apresentaram mais dificuldades de compreensão após a implementação do sistema digital.

“Esse é um cenário muito mais de cobrança sobre metas de acesso e conclusão de tarefas do que de um aprendizado real, de uma escola viva, com vivências palpáveis e plenamente humanas. Sobram dados, gráficos e metas, mas eles estão desvinculados do fazer pedagógico”, diz Jefferson.

Militarização

Outro ponto que liga o sinal de alerta da comunidade escolar é o Programa Escola Cívico-Militar na rede paulista de ensino, projeto de lei sancionado por Tarcísio de Freitas em maio deste ano.

A proposta prevê que policiais militares da reserva passem a atuar como monitores, além de desenvolver atividades extracurriculares e organizar a disciplina e a segurança nas unidades.

“Com base nas palestras que a gente teve na escola, a militarização basicamente vai tirar nossa liberdade de expressão. A gente não vai poder se vestir da forma que quisermos, nem usar brinco, pulseira e coisas que tragam nossa identidade”, relata Giovana.

O programa é direcionado sobretudo a unidades com índices de rendimento escolar inferiores à média estadual, atrelados a índices de vulnerabilidade social e fluxo escolar (aprovação, reprovação e abandono), geralmente localizadas em periferias, locais onde a violência e a opressão policial são historicamente presentes.

Enquanto a medida não avança, tanto docentes quanto estudantes articulam-se contra a mudança. No início de julho, movimentos estudantis se mobilizaram em um ato contra o projeto de implementação das escolas cívico-militares, enquanto o Sindicato dos Professores do Estado de São Paulo (Apeoesp) recorreu à Justiça para barrar a lei que cria o programa.

Jefferson Santana, professor (foto por Renata Armelin)

Jefferson Santana, professor (foto por Renata Armelin)

“Entendo que a escola pública é um espaço educacional para a formação humana, intelectual, cidadã e profissional. Espaço para a formação militar é outra coisa. É específica para quem deseja seguir essa carreira. Misturar essas duas coisas é minimizar as possibilidades da escola pública, é tentar enquadrá-la a um funcionamento de um quartel”, pontua Jefferson.

O estudante Luiz Fernando e a maioria de seus colegas são contrários à presença de policiais militares nas escolas. Ele indica que o foco deveria estar em melhorar a infraestrutura escolar, e não na militarização do ambiente.

“Aluno não é soldado e escola não é quartel. Acredito que essa abordagem não resolve os problemas estruturais e pedagógicos que enfrentamos nas escolas públicas! Em vez de criar um ambiente acolhedor e propício ao aprendizado, a presença de policiais e a militarização da escola devem aumentar a repressão e o medo entre os estudantes. Têm outros problemas também, como sufocar a liberdade de expressão e a individualidade de cada aluno”, diz Luiz Fernando.

Há poucas semanas, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) e a Defensoria Pública entraram com ação judicial contra a implementação do Programa Escola Cívico-Militar. Ambos os órgãos indicam que a resolução ultrapassa as competências e é inconstitucional.

Enquanto isso, o Governo de São Paulo recebeu uma lista com 302 unidades escolares espalhadas por todo o estado que manifestaram interesse em adotar a metodologia. A  expectativa é que de pelo menos 50 a 100 escolas cívico-militares estejam em funcionamento já no início de 2025.

Além de alterar a metodologia de ensino, interferir no calendário acadêmico e promover a entrada de militares nas instituições de ensino, a gestão de Tarcísio autorizou a licitação para a privatização de 33 unidades de ensino da rede estadual, em movimento sem precedentes em São Paulo.

Protesto realizado em julho por sindicatos e movimentos estudantis em São Paulo

Protesto realizado em julho por sindicatos e movimentos estudantis em São Paulo

Perspectivas baixas

“Acredito que o Novo Ensino Médio, a plataformização e a tentativa de transformar algumas escolas em cívico-militares são algumas das formas que o estado tem usado para controlar e vigiar o que se ensina”, afirma Jefferson.

O educador aponta que o cenário é desanimador uma vez que quem dá aula tem que lidar com tudo isso e com outros diversos problemas em sala de aula e fora dela, como a própria falta de valorização profissional e financeira, e indica que único caminho possível para uma melhoria de cenário seria uma união entre professores.

“A falta de consciência entre os nossos é, inclusive, de classe”, lamenta.

“Infelizmente a educação está como um Titanic afundando, com alguns profissionais tentando salvar o máximo de pessoas possível dentro dos poucos barcos de resgate, outros “tocando violino” em meio à tragédia e o governo de fora batendo palmas para a sua grande obra de destruição da educação e assim uma população que cada vez menos poderá ter formação escolar crítica para combater esse sistema. Como já disse um dia o grande Darcy Ribeiro, ‘a crise da educação no Brasil não é uma crise: é um projeto’”, conclui Jefferson.

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